Paulo Francis tinha razão: a TV nos faz desejar o impossível
O veículo provoca prazer e frustração ao propagandear uma irreal vida perfeita experimentada por poucos
Antes da inauguração da televisão no País, em setembro de 1950, o brasileiro recorria basicamente à imaginação para cobiçar o que não possuía.
Depois da estreia da Tupi, aconteceu o que se vê em ‘Tieta’, atualmente exibida no Canal Viva: a chegada da TV ao vilarejo de Santana do Agreste transforma a vida e a cabeça dos moradores.
A ‘caixa mágica’, com suas imagens deslumbrantes, faz o telespectador ampliar o limite mental dos desejos.
Não apenas de bens materiais, como os mostrados nos comerciais e nas ações de merchandising, mas também das conquistas lúdicas, como amor, prazer, poder e felicidade.
A TV abriu os olhos das pessoas para a amplidão do mundo. E, quanto mais longe enxergamos, mais coisas passamos a querer experimentar.
Assim ocorre com Bibi (Juliana Paes) em ‘A Força do Querer’: antes conformada com o pouco disponível, agora ela ambiciona mais e mais e mais. E não se importa com os meios ilícitos para chegar no topo.
“Na televisão se veem riquezas e estilos de vida que o vulgo desconhecia, ou de que só ouvia falar, e que agora vê entrar na sua sala de estar”, escreveu Paulo Francis na ‘Folha de S. Paulo’, em janeiro de 1990.
Visionário e profético, intérprete sagaz de seu tempo, o jornalista acreditava que a TV é “a força mais subversiva da nossa sociedade” devido à influência colossal exercida sobre o pensamento de milhões de brasileiros.
Por meio do telejornalismo, da teledramaturgia e dos produtos e serviços propagandeados nos intervalos, a televisão sugestiona o telespectador a respeito do que comprar, o que comer, como se vestir, em quem votar, e por aí vai...
Ao mesmo tempo, o veículo que se faz cada vez mais poderoso apesar da ameaça da internet, provoca a queda ao fosso da existência objetiva: a maioria das famílias não pode ter tudo aquilo que vê na tela e deseja.
Para Francis, “como há enorme propaganda de que somos todos iguais, a realidade (exibida na TV) provoca ressentimento crescente nos que não têm o que querem”.
Aquela mansão vista na novela. O vestido caro usado pela atriz. O carrão ostentado pelo jogador de futebol. O corpo esbelto da cantora. A facilidade de sedução do galã. A vida de marajá dos políticos.
Nós, telespectadores, somos bombardeados cotidianamente com imagens e situações capazes de atiçar a ambição e a fantasia – e, consequentemente, gerar frustração e inconformismo.
Afinal, não podemos ser e ter o que as novelas mostram. Não há dinheiro suficiente para comprar cada coisa oferecida nos comerciais.
Resta-nos sonhar com limitação, dentro do escapismo que a televisão proporciona para deixar suportável a rotina de milhões de brasileiros.
Para o inglês ganhador do Nobel de Literatura Harold Pinter, um dos escritores preferidos de Paulo Francis, “quando olhamos um espelho, pensamos que a imagem à nossa frente é exata. Mas basta nos movimentarmos um milímetro para a imagem se alterar. Aquilo que estamos realmente a ver é uma gama infindável de reflexos”.
A televisão é isso: uma ilusão deliciosa. Sessenta e sete anos depois do primeiro aparelho de TV começar a funcionar no Brasil, a gente ainda gosta de se autoenganar todos os dias.