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'Solidão e Companhia' traz versões sobre soco de Mario Vargas Llosa contra García Márquez

Discussão ocorreu durante evento público em 1976 e foi retratada por diversas pessoas

3 abr 2021 - 05h10
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Um dos capítulos mais folclóricos (e saborosos) do livro Solidão e Companhia, da colombiana Silvana Paternostro, se intitula Nocaute. Trata justamente do soco que o peruano Mario Vargas Llosa desferiu contra seu então grande amigo Gabriel García Márquez, em 1976, durante um evento público. É justamente esse incidente, que tantas fofocas rendeu, que reforça o método escolhido pela autora: o de unir várias vozes sobre um mesmo assunto.

Até aquele momento, nenhum dos dois havia recebido o prêmio Nobel de Literatura (Gabo ganharia em 1982 e Llosa, em 2010), mas eram mundialmente reconhecidos como grandes autores - bastam Cem Anos de Solidão (1967) e Conversa no Catedral (1969) como cartões de visita.

A admiração era mútua e ambos se consideravam amigos fraternos. "Mario, porém, era um grande mulherengo, pois era um homem bonito", conta, no livro, o fotógrafo colombiano Guillermo Angulo. "As mulheres morriam por Mario. Então, em uma viagem que fez de navio de Barcelona para El Callao, conheceu uma mulher linda. Eles se apaixonaram. Abandonou a esposa e foi embora com ela. E o casamento acabou."

Mais detalhes são apresentados, agora por Plinio Apuleyo Mendoza, romancista e diplomata colombiano. "Patricia (mulher de Llosa) está no navio com Mario quando ele se apaixona", narra ele. "Quando chegam ao Chile, Patricia tem de voltar a Barcelona e arrumar a casa. Gabo e (sua mulher) Mercedes ficaram com ela o tempo todo. Eles eram muito próximos."

Mendoza apimenta ainda mais a história rocambolesca ao lembrar que, quando Patricia necessita voltar a Santiago, Gabo a leva até o aeroporto e, como estão atrasados, o colombiano diz, sem pensar: "Se o avião decolar sem você, faremos uma festa". "Gabo é caribenho, e foi nesse espírito que ele disse isso, e ela entendeu mal", emenda Mendoza.

A continuação da história é novamente narrada por Angulo, que sempre foi um amigo próximo de García Márquez, desde o período de penúria que o escritor passou durante sua juventude em Paris. "A esposa de Mario voltou para arrumar a casa e, claro, começou a encontrar os amigos", relata o fotógrafo. "Então, Patricia e Mario voltaram e a esposa disse a ele: 'Não pense que não sou atraente. Amigos seus como o Gabo estavam atrás de mim'."

Aquilo certamente fez seu sangue latino entrar em ebulição, pois, a despeito de sua carreira como intelectual e da ciência do poder de persuasão das palavras, Llosa esperou o momento para resolver no muque.

A chance veio em um evento público na Cidade do México, em 1976. Segundo Angulo, foi em um teatro onde seria apresentada a pré-estreia do filme Sobreviventes dos Andes, inspirado em uma trágica história real sobre a queda de um avião que transportava uma equipe uruguaia de rúgbi, na cordilheira dos Andes - sem esperança de salvamento, os sobreviventes foram obrigados a tomar a terrível decisão de se alimentar da carne dos mortes para sobreviver.

Antes do início da sessão, Gabo avistou o amigo e foi em sua direção, com os braços abertos. "Mario", disse, sorrindo. "Vargas Llosa fechou o punho e disse: 'Isso é pelo que você tentou com minha esposa' e o derrubou no chão", narra Angulo.

"Ele ficou sangrando quando caiu porque a lente de seus óculos quebrou e a contusão foi bem feia", emenda Rodrigo Moya, também fotógrafo e amigo em quem Gabo depositava confiança, ainda que não fossem íntimos. Ele acrescentou um detalhe insólito: "Os primeiros socorros ajudaram a aliviar, e não sei se (o diplomata) China Mendoza ou (a escritora mexicana) Elena Poniatowska é que foi comprar um bife cru para colocar no olho dele. É tudo verdade. Treinei um pouco de boxe desde criança e se coloca bife em olho roxo. Não sei como, mas tira o hematoma".

Moya não presenciou o incidente, por isso, levou um tremendo susto quando, dois dias depois, ouviu batidas na porta: eram Gabo e a esposa, Mercedes. "Naquela época, eu não o chamava de Gabo, nem de Gabito - para mim, era Gabriel García Márquez", disse Moya ao Estadão, em uma entrevista por vídeo desde o México, onde vive. Com isso, o fotógrafo delimitava a amizade de proporções reservadas que os unia. Mesmo assim, o escritor colombiano o procurou em dois momentos importantes de sua carreira.

A segunda vez era naquela manhã - "Eles vieram para as fotografias. Ele me disse: 'Quero que você tire algumas fotos do meu olho roxo'. Eles confiavam em mim". Moya conta que Gabo usava uma jaqueta e Mercedes, de preto e um grande par de óculos escuros. "Perguntei: 'O que aconteceu?'. Ele fez uma piada, como 'Eu estava lutando boxe e perdi'. Quem explicou foi Mercedes."

Moya ri ao se lembrar do comentário da mulher de Gabo: "Mario é um idiota ciumento". Continua rindo ao comentar que o soco foi de direita, justamente no momento em que Llosa surpreendeu os amigos ao manifestar pensamentos direitistas. O fato é que Gabo queria mostrar que, apesar do olho roxo, estava bem - uma ideia, aliás, de Mercedes. "Gabriel não gostava de ser fotografado e, naquele dia, estava também deprimido." Foram várias chapas assim até que Moya disse algo e Gabo sorriu. "Disparei e consegui duas imagens. Divulgo uma delas, justamente uma das minhas fotos mais vendidas."

A outra vez em que eles se encontraram foi para fazer a foto que acompanharia a primeira edição de Cem Anos de Solidão. "Fizemos belas fotos, mas a editora preferiu que o livro só tivesse ilustrações. Uma pena."

Estadão
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