Na era do streaming, TV aberta vira a plataforma preferida do conservador
De novelas sem ousadia a programas policiais na liderança, a TV aberta tem se consolidado apenas uma entre tantas plataformas disponíveis: a favorita do conservador
Que o Brasil é conservador a gente sabe e faz tempo. No entanto, com a ascensão do streaming e de outros hábitos do telespectador brasileiro na hora de consumir produtos audiovisuais, a TV aberta tem deixado de ser um universo de diferentes opções heterogêneas para se unificar em único padrão: a plataforma preferida do conservador. Ao mesmo tempo, em que se quebra o monopólio, se concentra o público-alvo.
A diferença pode ser notada se observarmos as atuais estratégias da emissora A de telecomunicação brasileira: a Globo. No auge de sua consolidação no mercado da TV aberta, a Rede Globo repetia diariamente para o telespectador durante sua programação em meados de 1997 e 1998: "Quem tem Globo, tem tudo". Quase 30 anos depois, os números do ibope forçam cada vez mais a emissora a se tornar igual ao padrão de suas concorrentes para agradar o público da fonte ainda mais consumida do mercado televisivo: a TV aberta.
Chega a ser irônico, porque apesar da fama de "Globe" que ganhou nas redes sociais nos últimos anos - por fazer algo que sempre fez: estar ligado no mundo aqui fora, acompanhar a sociedade - a Vênus Platinada precisou frear e tem cada vez mais dado sinal de sua posição ao acenar sempre em prol do público conservador. O motivo: tentar sobreviver com a força e a voracidade que sempre teve na disputa de audiência - mesmo que isso lhe custe dar uns passos para trás.
A campanha "O futuro já começou", lançada em homenagem ao centenário do Grupo Globo, no início deste ano, parece não fazer jus ao nome quando o assunto é pauta de costume. Apesar de não haver informações oficiais, tornou-se público na mídia o veto à história de amor entre duas mulheres em Mania de Você, atual novela das 21h. Agora, novamente: Vinicius (Elvis Vittorio) deixa Garota do Momento, um dos maiores sucessos em repercussão da emissora, elogiada até mesmo no The New York Times, para enterrar, assim, o romance homoafetivo com Guto (Pedro Goifman).
Criativo sem voz
O assunto nem precisa estar resumido a temas de sexualidade, pauta esta que em tempos de polarização - apesar de a autora de Vale Tudo,Manuela Dias, se posicionar em entrevista ao Valor Econômico dizendo acreditar que o país é menos polarizado do que se imagina - virou "o terror" dos conservadores.
O desconforto beira todo o setor criativo. Está cada vez mais difícil para autores e idealizadores, principalmente do entretenimento, manter sua voz em seu projeto, marca esta que sempre fez a diferença na qualidade de seus produtos. Quem acompanhava a imprensa no início dos anos 1990, por exemplo, sabe as inúmeras vezes que Paulo Ubiratan, chefe de dramaturgia da casa, peitou e bancou projetos de nomes como Aguinaldo Silva, para que no final a Globo entendesse o que deveria/precisaria ser feito. Boni está vivo e confirma histórias semelhantes a essa amiudamente por meio de vídeos nas redes sociais.
O lema sempre foi: o que ficou bom é dele. Se não funcionou também é dele. Mas não importa: tem uma cara, tem uma voz. Agora, não tem sido assim. A proximidade da concorrência na disputa pelo share de audiência é um dos fatores apontados. Principalmente aos finais de semana. Basta notar que no último sábado, o policial Cidade Alerta - que não traz nada de novo desde os anos 1990, nem no conteúdo, nem na forma, - da concorrente Record vencendo o "descolado" Caldeirão com Mion.
Enquanto programas sem inovação alguma como o Programa Silvio Santos mantém a mesma audiência e público de 10, 15 anos atrás e a reprise de Tieta dá mais audiência que o BBB, programas que trazem o novo estão sendo cada vez mais rejeitados apesar de bombarem no streaming. Ninguém consegue fazer nada cerceado!
O maior exemplo de sucesso que temos nas últimas semanas é Beleza Fatal, novela produzida e lançada pela Max. Sucesso em 15 países e inclusive no Brasil via streaming, o folhetim ganhou as redes sociais e até as ruas com comentários do tipo "fazia tempo que eu não via uma novela assim".
Sem entrar na discussão do tamanho da obra e o tempo para ser feita, é significativo perceber que o impacto da autonomia do grupo criativo na obra fez e faz a diferença. Senão não teríamos um produto como Mania de Você no ar, refletindo o desgosto revelado de quem assiste e velado de quem ajuda a fazer todo esse tempo.
No entanto, ao chegar na TV aberta, sem um devido preparo pela Band após anos sem uma novela - e principalmente ousada como essa - na faixa, a novela transforma em sua estreia os 3 pontos recebidos do Jornal da Band em pouco mais de 1. Não dava para esperar que o público que assistia à atração herdeira do Faustão ou que aguardasse o R. R. Soares quisesse ingressar na Casa do Sim. Não à toa neste horário a Record tem 10 pontos com um formato bem consumido pelo público conservador: a novela turca.
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O futuro não começou!
Dividida entre criar polêmicas com o público não-conservador que ficou e quer ficar na TV aberta e manter/ampliar o público "ouro" da TV aberta atualmente, emissoras como a Globo tem mesmo um único caminho para acertar com louvor: não inovar. A prática entre as concorrentes da Globo não estranha a ninguém e é proposital, mas no canal dos Marinho isso talvez explique os remakes, fórmulas repetidas, reprises e algo como a continuação de Êta Mundo Bom, feita por um autor que sabe agradar todo mundo sem afrontar como se levasse um desenho animado ou um conto de fadas em forma de novela. O resto deixa para o streaming!
Aparentemente pode se tratar de uma simples estratégia de sobrevivência e não acarretar nenhum mal nisso, mas a pergunta que fica é: este caminho é mesmo o caminho do futuro prometido? A resposta está clara! Só falta assumir que para sobreviver seja necessário trocar a história de uma televisão ativa responsável por modificar modos, pensamentos e costumes por um meio passivo, disposto a agradar e segurar desesperadamente um público que, no fundo, sempre adorou consumir com frescor tudo aquilo que hoje esbraveja ao rejeitar.
Portanto, vemos que a TV aberta está fadada a um único público: o que quer Cidade Alerta, já que nos guarda-chuvas de oportunidades o público que consumia algo diferente disso não vê firmeza e identificação no que uma proposta "descolada" finge entregar. Ainda não é hora de ver a TV aberta sobrevivendo para nichos e desperdiçando sua força abrangente.
*As opiniões contidas neste artigo não representam necessariamente as opiniões do veículo