‘Make war, not peace’: Enquanto o Spotify investe em armas, um garoto salva o rock em 2025
Kai Slater lançou dois álbuns essenciais num ano dominado por robôs
Kai Slater, sob o nome Sharp Pins, resgatou a essência da música humana em 2025, lançando dois álbuns aclamados enquanto o ambiente musical enfrenta a crescente influência de algoritmos e conteúdos gerados por inteligência artificial.
Sigo entrincheirado como o soldado japonês Hiroo Onoda, recusando-me a acreditar que a guerra acabou e que perdemos. Minha ilha no Pacífico é a curadoria musical humana; o inimigo é a condução por rebanho operada por algoritmos comerciais. Insisto na missão, iniciada nos anos 1990, de peneirar, criticar e (tentar) fornecer mapas culturais, função que o jornalismo abandonou afogado nas métricas de engajamento.
Pois é por isso que o ouvinte médio provavelmente terminará 2025 sem saber que os dois melhores discos internacionais do ano saíram da mesma mente: a de Kai Slater, um jovem de 20 anos de Chicago. Sob a alcunha de Sharp Pins, Slater entregou o que o sistema de streaming luta para soterrar: música orgânica, imperfeita e humana.
Slater também integra o Lifeguard, e o projeto Sharp Pins surgiu em 2023 como contraponto aos padrões modernos de produção, operando na ética DIY. Ele rejeita o polimento digital em favor de gravações analógicas num Tascam Portastudios ou em fitas cassete, resultando em uma sonoridade que busca o auge do Power Pop dos anos 1960, aquele de Beatles e Kinks, filtrado pela estética lo-fi do Guided by Voices.
A produtividade é alta e constante. Em 2023, lançou Turtle Rock, estabelecendo sua identidade sonora, seguido em 2024 pela versão digital inicial de Radio DDR. Esses registros consolidaram sua posição no cenário independente de Chicago, provando que o método de trabalho não era um exercício de nostalgia, mas uma escolha estética deliberada de volume e consistência.
O ano de 2025 definiu a relevância do projeto com dois movimentos centrais. Em março, a reedição expandida de Radio DDR ampliou o alcance de faixas como "(I Wanna) Be Your Girl". A sequência veio em 21 de novembro com o álbum Balloon Balloon Balloon (o outro tal melhor do ano), puxado pelo single "Queen of Globes and Mirrors". A recepção da crítica especializada validou a capacidade de Slater de manter a autenticidade da gravação caseira sem soar como pastiche.
Para 2026, a agenda confirma a existência física da banda, na contramão dos artistas de algoritmo. O itinerário de janeiro nos EUA inclui o Bowery Ballroom, em Nova York, e a Third Man Records, em Detroit. Em fevereiro, o projeto cruza o Atlântico para datas na Espanha, passando por Madrid, Barcelona e Granada, levando a execução orgânica para o palco.
E aí, Spotify?
No front oposto, o cenário é de terra arrasada para a música real, original, legítima, scotch 18 anos. O ambiente de descoberta musical nos streamings tornou-se um terreno minado. Embora o Spotify evite divulgar dados que exponham suas vulnerabilidades, números da concorrente Deezer servem de baliza: cerca de 18% de todo o conteúdo carregado diariamente é gerado por inteligência artificial. Como as distribuidoras operam em bloco, enviando os mesmos arquivos para todos os serviços, é estatisticamente seguro projetar que o fluxo de entrada no Spotify espelhe essa realidade: quase um quinto dos novos uploads não possui origem humana.
A resposta da plataforma revela a dimensão industrial do problema. Em setembro de 2025, relatórios apontaram a remoção de 75 milhões de faixas de baixa qualidade ou geradas por IA no período de doze meses. O volume é desproporcional quando comparado aos 11 milhões de perfis de artistas totais da base. Isso indica não apenas excesso de produção, mas um mecanismo de fraude massiva onde bots e fazendas de conteúdo sobem milhares de arquivos para saturar o sistema e capturar frações de royalties.
A ironia reside na origem. A Suécia, berço do Spotify, tornou-se especialista na criação de "Artistas Fantasmas": produtores humanos gravam faixas genéricas de mood music (piano para dormir, jazz ambiental) e as lançam sob centenas de pseudônimos falsos, como "Sleepy Piano Guy", acumulando bilhões de plays sem nunca existirem. A segunda frente, a dos "Artistas Sintéticos", onde áudio, capa e biografia são 100% gerados por algoritmos, é o grupo que de fato impulsiona o crescimento daquela fatia de 18% nos uploads diários.
O Spotify sustenta esse cenário através de uma política de área cinzenta. A empresa declara oficialmente que não proíbe música feita por IA, vetando apenas o "streaming artificial" (robôs ouvindo música). Ou seja, se o ouvinte for humano, o artista falso é validado e monetizado. O resultado prático é que, ao acessar a seção de "Novos Lançamentos" hoje, o usuário navega por um catálogo onde quase uma em cada cinco faixas é um produto sintético, criado para preencher silêncio e gerar receita, não arte.
Daniel Ek, fundador da plataforma, opera sob uma lógica inversa à da contracultura que gerou o rock: investe em empresas de defesa e tecnologia militar. O lema não expresso é "Make war, not peace". O algoritmo não sugere o que interessa a você; sugere o que custa menos e rende mais para o negócio. O sistema prefere que você ouça um piano genérico criado por código para não pagar royalties a ninguém.
Contra essa máquina de guerra e fraude, é lindo que exista o Sharp Pins.