Livro conta a história da Kuarup, gravadora que guarda coincidências guiadas por um clássico da MPB
Em quase 50 anos de existência, a gravadora independente começou no Rio de Janeiro, lançou clássicos, ganhou Grammy, quase faliu e foi comprada pelo jornalista Alcides Ferreira, um dos protagonistas de uma casualidade que envolve 'Romaria'.
Foi por meio de uma reportagem publicada pelo Estadão que o jornalista e empresário Alcides Ferreira soube que a gravadora Kuarup, que tinha no catálogo discos de nomes como Arthur Moreira Lima, Turibio Santos, Cartola, Paulo Moura, Pena Branca & Xavantinho, Xangai, Cartola e Cida Moreira, estava fechando as portas, em 2009.
Fundada em 1977 no Rio de Janeiro pelo jornalista Mario de Aratanha e pela artista gráfica Janine Houard, a empresa havia sucumbido à crise da indústria fonográfica, que, naquela época, ainda aprendia a lidar com o avanço dos canais digitais sobre o mercado musical.
Ferreira, àquela altura diretor de comunicação da BM&FBOVESPA, atual B3 - anteriormente, ele também trabalhou na Agência Estado -, decidiu comprar a Kuarup. O que ele sabia sobre como tocar uma gravadora? Absolutamente nada. Ele nem sequer conhecia os donos da Kuarup. Porém, gostava de música e, três anos antes, havia organizado uma associação de apoiadores da Orquestra de Câmara Paulista.
A história da Kuarup, que envolve sonhos, persistência, criatividade e paixão pela música - além de coincidências quase divinas -, agora é contada no livro Tocando em Frente - A História da Produtora Kuarup ou Sobre Como Sobreviver na Economia Criativa no Brasil, de Ferreira, Aratanha e da jornalista Adriana Del Ré. O livro será lançado nesta quarta-feira, 16 de abril, na Livraria Travessa do Shopping Villa Lobos.
O livro está dividido em duas partes. Na primeira, Aratanha narra, em primeira pessoa, a fase carioca da gravadora, de 1977 a 2009. A segunda, assinada por Del Ré, contempla a fase paulista da Kuarup, depois que ela foi adquirida por Ferreira.
O objetivo de Ferreira era justamente contar, ou, como ele prefere dizer, "passar a história da Kuarup adiante". "Eu acredito muito no poder do bom exemplo. E a Kuarup é um bom exemplo. Ela é uma demonstração cabal de que um grupo de pessoas pode mudar o rumo das coisas. E não ficar prostrado, esperando um patrocínio, um filantropo, algo muito comum na área cultural. Milagres, normalmente, não acontecem", diz o empresário.
"A história me surpreendeu. Eu não sabia como o Ferreira havia de fato adquirido a Kuarup. Ele estava em uma situação de vida muito confortável. E a gravadora estava em um momento difícil financeiramente. Ele decide, então, ir em frente, sem medo, tentando se aliar a pessoas que pudessem levar a história adiante", comenta Del Ré, que mergulhou em histórias e arquivos da gravadora.
Ferreira, sempre objetivo, tem uma explicação direta sobre o que o motivou. "Foi uma oportunidade que passou por mim, que achei que pudesse dar certo na minha mão e resolvi tentar. Não teve um chamado especial", diz. Segundo ele, seria "muito triste" ver o acervo que uma gravadora independente havia construído até aquele momento, com cerca de duzentos títulos, se perder - ou parar nas mãos de credores.
Ferreira talvez abstraia a parte subjetiva justamente pelo fato de a compra ter dado um bom trabalho. Naquele momento foi preciso foco. Para ficar com a Kuarup, Ferreira assumiu as dívidas que a empresa possuía, além de fazer o investimento necessário para que tudo pudesse andar novamente. "Foi feito o melhor negócio para o catálogo da gravadora, e não o melhor negócio para Aratanha e Janine. Eles foram muito compreensivos com a questão", admite. A história que se conta é que ele adquiriu tudo por R$ 1, um valor simbólico nesse tipo de transação.
A fase paulista rendeu um sem número de álbuns de nomes como Chico Lobo, Alaíde Costa, Claudette Soares, Antonio Adolfo, Maria Alcina, Ayrton Montarroyos, Yamandu Costa, Sivuca, Joyce Moreno, Zé Geraldo, além de gravações de artistas como Chico Buarque, Ney Matogrosso e Edu Lobo.
Ao longo dos anos, a gravadora conseguiu ampliar suas áreas de interesse. Passou a ser também uma editora de livros, publicou as biografias de Geraldo Vandré, Taiguara e Hermeto Pascoal e a história de outra gravadora, a Forma, e tornou-se ainda produtora audiovisual - são dela os documentários A História Secreta do Pop Brasileiro, de André Barcinski, que está prestes a ganhar uma nova temporada, e Os 8 Magníficos, de Domingos de Oliveira.
"Ao contrário do que muita gente imagina, não precisa de muito dinheiro para fazer algo pela comunidade. A questão é que somos muito patrimonialistas, queremos fazer só para nós", afirma.
Os segredos de um sobrado em Pinheiros
"Se você acredita em coincidências, fique só com elas. Se acredita em alguma energia, se é uma pessoa religiosa, pode levar para esse lado. Fico com as coincidências. Elas são incríveis mesmo", diz Ferreira, que, ao reler material que Adriana Del Ré havia escrito, e depois de fazer a edição e acréscimos, escreveu uma apresentação. Ao terminar de fazê-lo, assinou e se deu conta da data, que fez questão de deixar registrada no livro: 'São Paulo, 12 de outubro de 2024, dia de Nossa Senhora Aparecida'.
"São Paulo é enorme. Pinheiros também é grande. É impressionante! Eu não acredito em coincidência, mas também não sei explicar o que é. De qualquer forma, ela casa muito com a fase paulistana da Kuarup. Tinha que ser nesse local. Foi algo forte para o livro", opina Del Ré.
Cinco discos históricos da Kuarup
'Semente Caipira' - Pena Branca
O primeiro álbum do músico e seu irmão e parceiro, Xavantinho, foi vencedor na categoria melhor disco de música sertaneja no Grammy Latino de 2001. Uma joia que merece ser redescoberta.
'Cantoria 1' - Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias, Xangai
Em 1984, o álbum uniu um timaço de músicos para tocar e contar histórias. Deu origem a uma série, além de um solo de Elomar, de 1995. Artista raro, atualmente está com 87 anos.
'Cartola Ao Vivo' - Cartola
Trata-se do registro ao vivo do último show do compositor carioca, que morreu em 1980. Gravado pelo produtor Pelão, traz o mangueirense cantando clássicos como Alvorada, As Rosas Não Falam e O Mundo é um Moinho.
'Heitor Villa-Lobos: A Floresta do Amazonas' - João Carlos Assis Brasil
Villa-Lobos talvez seja uma espécie de 'padrinho' da Kuarup, que generosamente sempre olhou sua obra. Aqui, traz uma de suas últimas composições do maestro, inicialmente feitas por encomenda da MGM, mas que foram transformadas por ele mesmo em uma suíte sinfônica.
'Ao Vivo em Tatuí' - Renato Teixeira & Pena Branca & Xavantinho
Renato Teixeira não poderia ficar de fora da seleção. Nesse álbum, junto dos músicos Pena Branca & Xavantinho, traz o fino da música caipira, nos registros de canções como O Cio da Terra, Cálix Bento e Tocando em Frente.
Tocando Em Frente: A História da Produtora Kuarup ou Como Sobreviver Na Economia Criativa no Brasil
- Autores: Mário de Aratanha, Adriana Del Ré e Alcides Ferreira
- Editora: Kuarup
- Páginas: 269
