'Não me Abandone Jamais' traz triângulo amoroso apocalíptico
Não me Abandone Jamais é como aquele domingo chuvoso em que o tempo se arrasta quase demente, quase ansioso, e sempre estranho. Ou apenas "silencioso e cinzento", como diria o cantor Morrissey. O filme de Mark Romanek, baseado no livro do best-seller Kazuo Ishiguro, não é de fácil digestão, tal como não costumam ser os úmidos domingos. Afinal de contas, estamos falando de uma ficção científica que se passa nos prados ingleses, verdes em cor e marrons em espírito, com personagens que, para nossa assombração, parecem pertencer ao nosso tempo e não a algum momento do futuro quando não teríamos mais responsabilidade sobre as decisões das gerações posteriores.
» Alugue ou Compre Vídeos no Terra Video Store
» Assista a trailers de cinema
» vc repórter: mande fotos e notícias
Parábola para vários sintomas da enfermidade emocional da sociedade contemporânea, o trabalho de Romanek rende discussões justamente porque não questiona todos os absurdos que a história de Ishiguro apresenta. É sua resignação, tal qual a resignação dos personagens, que cresce em nossas cabeças após os créditos finais.
O roteiro do filme parte exatamente de onde começa o enredo do livro: do momento em que Kathy, interpretada por Carey Mulligan, percebe que, em pouco tempo, sua missão em vida vai mudar e não há nada que se possa fazer para evitar isso. Aliás, evitar não está em jogo. Em Não me Abandone Jamais, o destino é uma sentença sem margem para questionamentos.
Quando Kathy se introduz na história, ela é uma "cuidadora" que, depois de anos servindo nesse posto, passará em breve a ser uma "doadora". Em princípio, a real função desses papéis são obscuros ao espectador. Seus significados vão se tornando mais claros à medida em que as relações entre Kathy, Ruth (Keira Knightley) e Tommy (Andrew Garfield) se tornam mais tensas e dramáticas.
Vamos perceber logo depois que esses três personagens centrais se conhecem desde crianças, quando compartilhavam do ambiente esterilizado e bem comportado de um internato conhecido como Hailsham. E que Hailsham, o lugar "perfeito", era na verdade um campo de concentração cuja função sempre foi nutrir e alimentar seres humanos que, um dia, seriam os tais "doadores", palavra gentil para uma tarefa, literalmente, doentia. Explicar o que se trata pode danificar as estranhas surpresas da trama.
Mais relevante que esse pano de fundo quase apocalíptico - polidamente apocalíptico - é entender como ele dá complexidade àquilo que é a base de toda a história: um triângulo amoroso sufocante. Ao som de Judy Bridgewater, vemos Kathy ainda adolescente fechando os olhos no refrão de Never Let Me Go (que dá título ao filme), música que nos explica sobre sua relação sempre platônica com Tommy. Ruth, por sua vez, é o elemento que interrompe o curso natural do romance entre Kathy e Tommy. Curiosamente, a semente rebelde que existe na personagem de Knightley é a primeira que se esvai no processo de amadurecimento do trio.
Importante frisar que Mulligan, Knightley e Garfield, em medidas semelhantes, encaram seus personagens com a apatia necessária aos mesmos. Uma apatia que incomoda e, de certa forma, comove. A câmera de Romanek segue esse tom lento, em adágio, numa sinfonia cujo ápice não existe e termina sendo silenciada por essa impossibilidade do grito.
A pontuar que Romanek é um diretor mais conhecido por seu trabalho em documentários musicais do que por dirigir ficções. Em seu currículo, estão vídeo-documentários para Michael Jackson, Madonna, David Bowie, Janet Jackson, Red Hot Chili Peppers, além do supracitado Morrissey. Não é de se estranhar então que Não me Abandone Jamais soe como um vinil sujo e arranhado, repetindo um som que nos é proibido tirar da agulha.