Da comunidade à novela, a trajetória de Faíska Alves inspira: 'Tópico sensível'
Criado no Complexo da Alma, em São Gonçalo, Faíska Alves fala sobre a estreia em Dona de Mim, a conexão com a comunidade e a missão de inspirar os jovens ao seu redor
Com força de vontade e talento, Faíska Alves se tornou referência para os jovens de sua comunidade e retorna à TV em sua primeira novela, Dona de Mim, interpretando o personagem Jeff. Em entrevista exclusiva, ele conta como é dar vida a um jovem que reflete sua própria realidade, a entrada da arte em sua vida e a responsabilidade de inspirar outros jovens.
Dona de Mim é sua primeira novela. Como tem sido dar vida ao Jeff?
"O Jeff é um cara astral, um jovem que, como eu, está correndo atrás de melhoria para ele, para a família e tentando ser inspiração para os amigos também. A batalha de rima é um ponto de equilíbrio para o Jeff, onde ele coloca a cabeça no lugar e vê que não se pode deixar levar pelas coisas que acontecem na comunidade. Fazer o Jeff está sendo muito legal, porque ele tem o mesmo nome que eu. Sou conhecido como Faíska, mas meu nome de batismo é Jefferson. Agora nas ruas as pessoas me chamem pelo meu nome, que é uma coisa que antes não acontecia e aí as vezes esqueço que estão me chamando de Jeff por causa do personagem [risos]. Fazer o Jeff é um presente para eu lembrar também quem eu sou, quais são as minhas raízes. Não que eu tivesse esquecido, mas é para realmente confirmar tudo que eu vivi e continuo vivendo, porque ainda moro em comunidade. É o início de um sonho que tenho certeza de que vai bem além."
Como a arte entrou na sua vida?
"Eu e meu irmão gêmeo começamos fazendo vídeos dançando para a internet e isso começou a chamar atenção. Até que começamos a modelar, me formei como modelo, peguei DRT profissional e a publicidade e a moda foi o que transformaram a nossa vida."
E quando começou a atuar?
"A gente começou a fazer comerciais que precisava que decorássemos falas e aí percebemos que estávamos atuando. Em 2020, apareceu um teste na TV Globo para fazer Malhação - Transformação. Sem empresário, eu e o Fumassa fomos fazer o teste na cara e na coragem e passamos. O diretor disse que não tinha gêmeos na história, mas que gostaram tanto da gente que iríamos entrar como elenco de apoio e depois iriam criar a nossa trama. Só que a pandemia veio e Malhação caiu. Nesse período, conhecemos uma empresária e começamos a fazer testes. Hoje a gente estuda atuação e vive disso."
Você é muito estiloso. Começou a exercer esse gosto com o trabalho de modelo?
"A minha família continua sendo simples, nossa realidade é complicada. Infelizmente, a minha história triste é a realidade de várias pessoas. Por ser gêmeo, eu e meu irmão, a gente sempre tinha que dividir roupa e lá em casa tudo o que a gente tinha era doação. A minha mãe trabalhava como empregada doméstica e a patroa dela tinha dois meninos mais velhos que a gente, então a roupa que eles não usavam mais ela dava pra gente. Eram roupas de marcas, a gente não tinha condição de comprar e ficava muito feliz como se fosse roupa nova."
E quando isso mudou?
"A gente foi crescendo, começou a dançar e sabia que tinha que se vestir bem e começamos a comprar em brechó. Até que começamos a customizar calça de brechó para empreender. A gente comprava uma calça de R$ 10, pagava R$ 5 para apertar do lado, a gente mesmo rasgava, manchava com cloro e vendia por R$ 80. A gente foi fazendo isso, juntando dinheiro, até lançar a nossa marca, que é fruto da nossa realidade, dos meninos que vestiam roupa dos outros. A marca se chama Kebra, porque a gente quebrou todas as barreiras para estar onde está. A nossa vida é transformando situações complicadas em momentos bons."
E conseguiu mudar a realidade de vocês?
"Isso é um tópico sensível. A minha mãe hoje tem 61 anos, eu tenho 24, e com 22 eu e meu irmão conseguimos aposentá-la. E depois de dois anos ela conseguiu ser aposentada pelo governo, de forma oficial. Desde os meus 13 anos meu sonho era ser jovem aprendiz, meu irmão sonhava em ter carteira assinada. Tudo que eu queria era trabalhar com uniforme, certinho. E uma coisa que a gente falava desde criança era que queria vencer na vida para falar: 'Mãe, você nunca mais vai precisar trabalhar!' Então hoje eu me sinto vencedor. Tudo o que está acontecendo é além, Deus faz mais do que a gente pede."
Como transita entre universos muito distintos. Como lida com isso?
"São realidades que chocam. Lembro que no primeiro cachê eu tinha vergonha de falar para a minha mãe quanto ganhei, porque eu sabia que ela precisava saber daquela realidade, mas, ao mesmo tempo, era duro. Eu fiquei constrangido de falar que fiz em duas diárias um valor que ela não conseguiria em 5 meses de trabalho. Isso é uma realidade que dói, mas ao mesmo tempo me motiva a seguir em frente para que essa realidade possa ser transformada. Hoje tivemos que aprender a lidar com isso, porque a gente, que vem de comunidade, até sobre as nossas conquistas tem que saber lidar, para não se tornar refém delas. A forma que chegamos à comunidade, a forma que tratamos os outros. Sinto que agora, com a novela, estou tendo um olhar mais sensível a esses pontos também. Porque a gente vem numa corrida tão desgastante que às vezes esqueço que as coisas estão acontecendo. Por isso, continuo falando: acreditem nos sonhos de vocês! A gente não tinha investidor, não tinha empresário, não tinha advogado para ler contrato, mas tínhamos a coragem e esse instinto de sobrevivência, o desejo de vencer e hoje a gente está aprimorando, estudando, aprendendo inglês."
Você ainda mora no Complexo da Alma, em São Gonçalo. As pessoas se surpreendem com isso?
"É que, infelizmente, a gente vive uma realidade que ainda falta muita coisa lá dentro. Mas se a gente tivesse tudo o que fosse por direito, eu não veria problema em sair de lá. O nosso intuito lá dentro do Complexo da Alma é transformar essa visão. Lembro que quando a gente começou a contar de onde éramos, muita gente que morava lá ainda tinha vergonha de dizer. E vestimos essa camisa, porque a gente cresceu vendo o Nego do Borel, a Roberta Rodrigues do Vidigal, pessoas que falam de onde são e não têm vergonha. Então, decidimos mostrar o outro lado da moeda para as pessoas, porque a cara da comunidade todo mundo já sabe, vai ser droga, tráfico, falta de oportunidade, falta de saneamento básico. Mas a gente quer mostrar a coroa da favela, onde tem talento, transformação, arte, resiliência, cultura, amor. Hoje se você procurar por Complexo da Alma vai ver nossos projetos, vai ver que Faíska e Fumassa são de lá e não só que fulano foi preso ou que teve guerra do tráfico. E isso é o que pegava a gente. Hoje a gente está lá pela nossa missão. Até há pouco tempo era por falta de escolha, mas hoje a gente acredita que a nossa missão lá ainda não acabou. E, se um dia a gente sair, vamos voltar, não tem como largar. Brinco que minha casa vai virar a Associação de Moradores [risos]."
Vocês são referência para os jovens de lá...
"A gente se tornou a referência que talvez não tivemos. Ou talvez tínhamos, mas não era tão próximo como é agora, assim, como a gente ainda mora na nossa comunidade, ainda falamos com essas crianças que existem caminhos possíveis. O que está acontecendo hoje, de eu estar na novela, é como se eu tivesse num time de futebol, numa partida onde eu tivesse que vencer pelos meus que estão lá, para dizer que eles são capazes, que eles podem. A gente criou o nosso projeto social que se chama Arte Que Toca a Alma, porque eu e meu irmão acreditamos no legado de que todo jovem de comunidade é uma lâmpada e a oportunidade é o que faz essa lâmpada brilhar. Hoje as pessoas falam: "Que legal que você está brilhando". Isso é fruto de oportunidade. Ainda tem muitas outras lâmpadas para serem acessas e o que a gente puder fazer para ser essa conexão entre aqui e lá, e fazer com que eles brilhem também, vamos fazer. É radiante, não tem preço. Nunca foi sobre o glamour de estar na novela, na TV Globo, até porque quando a gente começou, só estávamos tentando mudar nossa realidade. E hoje descobri que eu posso mudar a realidade de outras pessoas. Então, não é só a responsabilidade que eu tenho com a minha vida, mas a responsabilidade que eu tenho com essas outras crianças que estão acompanhando o meu trabalho."
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