PUBLICIDADE

Clássico do Dia: 'O Corpo Ardente' retrata a solidão no topo da pirâmide social brasileira

Todos os dias um filme clássico é analisado pelo crítico do 'Estadão'; como esse, que moldou a estética de Walter Hugo Khouri

18 jun 2020 - 08h09
(atualizado em 28/10/2020 às 20h49)
Compartilhar
Exibir comentários

São momentos de antologia, estão entre os melhores da história do cinema brasileiro - a cena do bolinho de frigideira, que remonta à infância da personagem de Norma Bengell em Noite Vazia, de 1964; o cavalo, a crina ondulante, que passa na lateral do carro de Barbara Laage em O Corpo Ardente, de 1966. Jefferson Barros, um grande crítico gaúcho, perguntou-se, naqueles anos, o que seria de Michelangelo Antonioni sem a Itália, de Alain Resnais sem a França, de Ingmar Bergman sem a Suécia? Seriam Walter Hugo Khouri fazendo cinema no Brasil.

Nascido em São Paulo, em 21 de outubro de 1929, Khouri foi crítico de cinema - no Estadão. Pertencia a uma geração de intelectuais paulistanos que admirava a cultura europeia. Venerava Bergman, e isso lhe valeu o rótulo de 'Sueco'. Tornou-se diretor em 1953, com O Gigante de Pedra e teve uma primeira fase marcadamente bergmaniana. Ele próprio admitia o choque que lhe produziu Noites de Circo, quando assistiu ao filme no Festival Internacional de São Paulo, de 1954. Justamente esse Bergman lhe foi decisivo quando fez Na Garganta do Diabo, e o filme de 1959 lhe valeu o prêmio de roteiro no Festival de Mar del Plata do ano seguinte. Terminou substituindo Bergman por Antonioni em outra fase que começou com Noite Vazia.

Em geral, é seu único filme que a crítica de esquerda levava em consideração. Khouri, por sua sofisticação e pelos temas da solidão e da incomunicabilidade no topo da pirâmide social brasileira, estava na contracorrente da estética da fome do Cinema Novo. Seria 'alienado'. Foi a fama que o acompanhou até a morte, em 27 de junho de 2003 - serão 17 anos dentro de alguns dias. Em momentos pontuais, o próprio Glauber reconheceu seu valor, mas o mal-estar persiste. Embora tenha deixado o legado de uma obras autoral extensa, com 26 títulos, ainda é pouco considerado. Nem Antonioni, nem Bergman. Khouri pode ter assimilado a influência dos dois, e até a de Resnais, mas foi, sempre, ele mesmo.

Criou um personagem, Marcelo, que virou seu alter-ego na tela. O ciclo 'marcelhal', como o chamava, aborda sempre a ascese de um homem que se degrada na busca do prazer e do sexo para atingir a elevação. Entre 1964 e 67, realizou um punhado de filmes - quatro - que estão, necessariamente, entre os melhores da história do cinema do Brasil. Noite Vazia, o episódio de As Cariocas - ele, um paulista! -, O Corpo Ardente e As Amorosas. O mais khouriano de todos é o Corpo. Constroi-se sobre uma personagem feminina - como outros momentos da trajetória de Khoutri - e aborda a mulher na natureza. Até Bergman percorreu essa trilha nos filmes realizados na ilha de Faro.

Essa mulher é interpretada por uma estrangeira, a atriz francesa Barbara Laage, com importantes filmes produzidos na França e nos EUA, nos anos 1950 e 60, até 70. Chama-se Márcia, é casada. Tem marido, filho e amante. O filme abre-se e fecha-se com uma festa, mas, como ocorre com frequência no cinema de Khouri, não há o que festejar. Márcia está insatisfeita com o amante, o marido tem a amante dele. Márcia troca a cidade pelo sítio em que passava as férias, quando criança. Leva o filho, Roberto, e a situação edipiana percorre O Corpo Ardente. Apesar do nome, Roberto pode muito bem ser a gênese para a angústia que corroi a alma de Marcelo nos filmes futuros. No sítio, a mãe identifica-se com um cavalo, naquilo que representa de potência e liberdade.

Como boa personagem khouriana, Márcia busca sua ascese e sobe com o filho ao pico do Itatiaia, ao lugar conhecido como trono de Deus, que Khouri usou de novo como locação em Eros, o Deus do Amor, longa de 1981 com o qual O Corpo Ardente dialoga de forma profunda. Com belíssima fotografia em preto e branco de Rodolfo Icsey - e Rupert Khouri na câmera -, o filme integra a bruma no alto da serra para criar um clima etéreo de sonho. A cena emblemática, até pela montagem assinada por Mauro Alice, é a da perseguição ao cavalo deflagrada pelo pai, com a mãe ao volante do carro. Ele passa pela lateral, a crina ondulando ao vento, os músculos retezados. É de perguntar-se se o cineasta norte-americano Mark Rydell terá visto O Corpo Ardente? A cena citada reflete-se em sua bela adaptação de The Reivers, de William Faulkner, e é verdade que está no livro, mas é a forma como é mostrada em Os Rebeldes, de 1969, com Steve McQueen.

O adulto relembra o garoto que foi, cavalgando ao vento no lombo do animal, naquela corrida que o marcará para sempre. Roberto também será marcado, como a mãe, pela(oni)presença do cavalo. Mãe e filho compartilham o desejo sexual, mediado pelo cavalo, como a água será mediadora do desejo das mulheres num Khouri de 1972, As Deusas, que pode muito bem ter sido o Persona/Quando Duas Mulheres Percam do autor brasileiro. A cena da perseguição, reunindo pai, mãe e filho, será fundamental para os problemas de Marcelo quando adulto.

Entre Noite Vazia, com os dois casais no apartamento na noite de São Paulo - os jogos sexuais e o dinheiro como (não) valor, pois as personagens de Norma Bengell e Odete Lara são prostitutas - e Corpo Ardente, Khouri fez o epísódio de As Cariocas, uma joia de concisão narrativa com Jacqueline Myrna como garota de Copacabana que também negocia o corpo, mas sem perder a inocência. (Claro que poucos concordarão, mas outro diretor de São Paulo, Roberto Santos, reputado por O Grande Momento, que antecipou o Cinema Novo, e A Hora e a Vez de Augusto Matraga, considerado um marco do movimento, assinou em As Cariocas sua obra-prima, o episódio da lavagem do carro no subúrbio, em que Íris Bruzzi é absolutamente gloriosa.)

Nos anos 1970, Khouri conseguiu ser autoral fazendo filmes no contexto da Boca do Lixo. Não eram produzidos com recursos públicos. Para ter retorno na bilheteria e seguir com os termos do autor, são filmes que têm muito sexo, mas o sexo, justamente, sempre foi um tema para ele. Ao repórter, Khouri muitas vezes reclamou da cor daqueles filmes, e não por causa dos fotógrafos com quem trabalhou. A cor lhe desagradava porque acentuava a vulgaridade do figurino. Seus produtores minimizavam esse custo, achavam que não valia a pena. Khouri sempre achou que o figurino datava os filmes que fez na Boca do Lixo. Seu sonho nada secreto era o tailleur de bolinhas de Monica Vitti em A Aventura ou o pretinho básico que a atriz usava em outro filme de Antonioni, A Noite. Nos seus melhores momentos, quando controlava a produção, Khouri conseguiu integrar esse detalhe nada negligenciável ao processo criativo.

O figurino é personagem em Noite Vazia, em O Corpo Ardente. Nesse, foi criado por Clodovil. Como recriar o topo da pirâmide com figurino de liquidação, desesperava-se o cineasata? Além de Barbara Laage, o filme traz Lilian Lemmertz e Dina Sfat, e a boca amarga da primeira fez dela a Jeanne Moreau do cinema brasileiro nos filmes de Khouri. Para o papel de Roberto, ele escalou o próprio filho, Wilfred Khouri. É um clássico que vale resgatar.

Assista ao filme:

Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade