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O lugar onde ainda se fala a língua asteca

Milpa Alta - que mantém tradições de seu passado pré-colombiano - parece um pequeno vilarejo de montanha, mas faz parte da região administrativa da Cidade do México.

16 out 2018 - 17h57
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Metade do território de Milpa Alta é coberto por florestas
Metade do território de Milpa Alta é coberto por florestas
Foto: Megan Frye/BBC / BBC News Brasil

Na década de 70, antes de a estrada de terra ser asfaltada e se tornar a rodovia de duas pistas que leva a Milpa Alta, a avó de Javier Galicia-Silva descia as montanhas com destino a Xochimilco todos os dias às 4h.

Dali, ela embarcava em uma chalupa (um táxi aquático de grandes proporções) por meio dos antigos canais que levam ao centro, onde passava o dia vendendo produtos frescos no distrito de La Merced perto do centro histórico da cidade mexicana.

Com um pouco de dinheiro no bolso e alguns suprimentos nas costas, ela retornava para casa por volta das 20h para poder dormir e recomeçar a jornada no dia seguinte.

Embora os agricultores de Milpa Alta façam agora a mesma viagem pela estrada, levando nopal (uma espécie de cacto comestível), mole (um tipo de molho mexicano), mel e tortillas de suas casas e jardins para vender nos mercados e nas lojas da cidade, muito pouco mudou desde aquele tempo.

Milpa Alta ("Milharal Alto", em tradução livre) não poderia ser mais diferente da cidade cheia de poluição a que pertence formalmente e que negligencia sua localização na encosta da montanha. Embora seja oficialmente uma das 16 "demarcações territoriais" da Cidade do México (forma pela qual a capital mexicana é dividida administrativamente e antes chamada de "delegações"), permanece pouco visitada.

Turistas estrangeiros são raramente vistos por ali. E, mesmo com o passar dos anos, a população local mantém vivas tradições centenárias.

Milpa Alta é a delegação mais ao sul das 16 que formam a Cidade do México
Milpa Alta é a delegação mais ao sul das 16 que formam a Cidade do México
Foto: Megan Frye/BBC / BBC News Brasil

Falar a náuatle, a língua do império asteca, e usar o milpa, o sistema de rotação de culturas pré-colombiano, são algumas delas. Metade da área de Milpa Alta ainda é coberta por florestas e as terras ainda são, em sua maioria, livres de pesticidas, irrigadas por chuvas e lavradas por cavalos.

Insetos e vários tipos de milho (incluindo variedades azuis e vermelhas) ainda fazem parte da dieta desta região que produz uma grande quantidade de alimentos para a capital, assim como fez para os habitantes de Tenochtitlán (a antiga cidade-sede dos astecas, onde agora se localiza a área central da Cidade do México) há mais de 500 anos.

Oásis na região da capital

De todas as "demarcações territoriais" da Cidade do México, Milpa Alta é a mais verde e menos povoada. É uma terra de florestas e campos, e não de favelas que brotam em meio ao concreto, tão presentes na capital mexicana.

Apesar da estrada ser relativamente nova, chegar a Milpa Alta requer esforço. O congestionamento de Xochimilco, a delegação vizinha, faz com que seja longa a viagem de ônibus tanto da estação de trem em Xochimilco quanto de Tasqueña, a estação de metrô mais ao sul da cidade e seu centro de transporte.

Demorei duas horas para chegar a Milpa Alta. Mas, à medida em que me aproximava, via sinais de que a viagem havia valido a pena. O trânsito se dissipou, o ar ficou menos pesado, o ônibus se esvaziou lentamente e as montanhas que são muitas vezes invisíveis da zona central da capital mexicana, de repente, pairavam sobre mim.

Ali, encontrei Galícia-Silva, um historiador e professor mesoamericano. Ele usava um suéter vermelho e uma boina preta quando abriu a porta de sua casa para mim. Galícia-Silva acabara de dar uma aula gratuita de náuatle para moradores locais.

É a forma que ele encontrou para ajudar a manter viva a língua de seus ancestrais. Galícia-Silva falava espanhol rápido, sorria com frequência e movimentava-se devagar. Convidou-me para acompanhá-lo ao jardim. Falou com orgulho de seus avós e de sua cidade natal de Santa Ana Tlacotenco, em Milpa Alta.

Moradores de Milpa Alta vivem como antigamente, empregando técnicas agrícolas tradicionais para cultivar suas colheitas
Moradores de Milpa Alta vivem como antigamente, empregando técnicas agrícolas tradicionais para cultivar suas colheitas
Foto: Megan Frye/BBC / BBC News Brasil

"Não sinto que sou parte da cidade", disse ele enquanto comíamos carambola, goiaba e uvas plantadas ali, movendo nossas cadeiras de plástico para escapar do sol escaldante do verão. "A cidade começa em Xochimilco e segue para o norte. Sou de Milpa Alta. Se encontrar alguém de Milpa Alta enquanto estou na cidade, perguntamos um ao outro quando voltamos para casa. Há um sentimento de irmandade aqui", explica.

Milpa Alta, com sua antiga língua e costumes, é autossuficiente há milênios. As florestas são o lar de veados, coelhos e até mesmo cogumelos alucinógenos que Galícia-Silva diz que podem fazer você "enlouquecer" se não forem cozidos corretamente. Muitos dos moradores de Milpa Alta trabalham produzindo mole, e a região produz 90% do mole consumido na Cidade do México.

Transmissão da cultura

Tradições mesoamericanas ainda permanecem vivas, tais como temascals realizados por xamãs (um banho de suor indígena dentro de uma cabana de adobe que teria supostamente propriedades curativas e espirituais).

Moradores locais também se orgulham de suas festividades, incluindo uma festival de verão em cada um dos seus 12 pueblos (povoados). A maioria deles inclui danças tradicionais, peregrinações religiosas e mayordomías (a custódia de um ícone religioso em sua casa e a realização de uma festa para a comunidade).

O Dia dos Mortos, comemorado entre 1º e 2 de novembro, um feriado que mistura tradições indígenas e católicas, é celebrado de forma diferente aqui: moradores vão ao cemitério no dia 29 de setembro para "convidar" formalmente os mortos para as casas dos vivos. Sem esse convite, eles dizem que os espíritos não se juntarão às suas famílias.

Quando o feriado chega, as fogueiras são feitas fora de cada casa, em torno do qual toda a família se reúne para comer tamales - um prato pré-hispânico, feito com massa de milho e geralmente carne, depois cozido no vapor em uma casca de milho.

Ao caminhar pelas ruas íngremes e sinuosas dos povoados, você provavelmente será convidado para uma conversa, um pouco de pulque picante (néctar de agave fermentado) ou um tlacoyo fresco (uma tortilla de massa de milho recheada com queijo, feijão ou carne e coberto com nopal, queijo e salsa).

As pessoas daqui dependem umas das outras e todos se conhecem pelo nome. Você ouvirá palavras em náuatle com frequência, embora o futuro da língua seja incerto há anos.

Muitos moradores ainda falam o náuatle, a língua do império asteca
Muitos moradores ainda falam o náuatle, a língua do império asteca
Foto: Megan Frye/BBC / BBC News Brasil

"Minha avó nasceu na década de 1920 e só falava náuatle", diz Galicia-Silva. "A mãe dela, minha bisavó, dizia que ela precisava ensinar seus filhos a falar espanhol, não náuatle. Meu pai foi a última geração que aprendeu náuatle na escola. Hoje em dia, não é mais a língua da comunicação", acrescenta.

De acordo com o historiador, na década de 1980, grupos de professores e membros da comunidade de Milpa Alta propuseram ao governo da cidade que tornasse obrigatório o ensino de náuatle em escolas públicas.

Mas as autoridades afirmaram que os estudantes deveriam aprender espanhol como língua nativa, e inglês, francês ou alemão como segundo idioma, para aumentar as perspectivas futuras de emprego e educação.

Discriminação e resistência

Ao longo da história colonizada do México, falar uma língua indígena era motivo de discriminação, ainda presente até hoje. Galícia-Silva lembra-se de ter sido perguntado em sua universidade se ele era indígena.

Seu pai sempre lhe dissera que eles eram uma família de agricultores: a palavra "índio" nunca fez parte de seu vocabulário. Hoje, o historiador se identifica com orgulho como indígena; especificamente, como Nahua.

E há mais exemplos de resgate de identidade local. Subindo a ladeira a partir da casa da Galícia-Silva, está a casa do artista José Ortiz Rivera, onde ele e Oswaldo Galícia Calderón, ambos professores de náuatle, dão aula voluntariamente a familiares e vizinhos. A esperança deles é manter a língua viva entre as gerações mais jovens.

"Meus pais falavam náuatle e agora se foram", diz Victor Ortiz, irmão mais novo de José e natural de Milpa Alta. Seu irmão havia passado mais tempo com seus pais e avós que falavam náuatle, e agora ele quer aprender também. "Sinto que é uma obrigação; tanto para resgatar minha identidade quanto pertencer a essa comunidade", explica.

Enquanto isso, a população da delegação está crescendo rapidamente com pessoas de fora da comunidade Nahua, algo que preocupa Galícia-Silva quanto às áreas verdes e ao estilo de vida.

"Quer queiramos ou não, estamos em um mundo globalizado e isso não vai mudar", disse ele, acrescentando que o rejuvenescimento da língua e da cultura indígenas pode ajudar a desmantelar cinco séculos de opressão e exploração. "Isso significa que temos que fazer estudos profundos da nossa língua e da nossa história. Ainda estamos longe de uma descolonização do nosso pensamento, mas estamos no caminho".

Saí de Milpa Alta com a barriga cheia e o coração animado com a hospitalidade dos desconhecidos. Na viagem de ônibus de volta, pensei nos grandes avanços que Milpa Alta está fazendo para recuperar sua identidade e como, apesar de fazer parte desta megalópole movimentada, ainda se sente a um mundo de distância.

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