PUBLICIDADE

Adolescentes criam campanha antirracista na periferia de BH

Materiais produzidos na Campanha Fala Direito, do projeto Desembola na Ideia, são disponibilizados gratuitamente

15 mar 2022 - 08h10
(atualizado em 16/3/2022 às 14h35)
Compartilhar
Exibir comentários
Artes dos participantes do projeto Desembola na Ideia
Artes dos participantes do projeto Desembola na Ideia
Foto: Divulgação

Estatísticas que comprovam que o Brasil é um país preconceituoso em relação às pessoas negras têm sido frequentes pautas de discussões. Mesmo concordando com os números, muitas pessoas não assumem o próprio preconceito e criticam a existência do que consideram "vitimismo", "politicamente correto" ou o tão usual "mi mi mi" quando se trata da dor alheia.

Essa rotina da tentativa de esconder atitudes e comportamentos criminosos não escapa aos registros de Minas Gerais, onde somente até novembro de 2021, foram 295 casos de injúria racial, com causa presumida de racismo. Em Belo horizonte, o aumento foi de 13,04%, passando de 46 para 58 denúncias. Os dados são da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp-MG) e mostram que a luta de pessoas pretas contra o racismo passa longe de representar apenas uma expressão informal de conotação pejorativa.

Por essa realidade é que surgiu a Campanha Fala Direito, do projeto Desembola na Ideia, desenvolvido pela instituição Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC). A campanha foi realizada colaborativamente por adolescentes que estavam em centros de internação do sistema socioeducativo e pela equipe de arte-educação e comunicação do projeto. As ideias e conteúdos produzidos surgem das oficinas de educomunicação, nas quais os participantes conversam sobre os assuntos que envolvem os jovens negros e periféricos e refletem sobre o direito dessa população a uma vida digna e justa.

Na primeira etapa da campanha os jovens elegeram o tema preconceito. A edição foi nomeada como Desarme seu Olhar, que revela como o racismo gera exclusão social, violações de direitos e mortes nas juventudes periféricas. Em uma das ações da campanha, o BEÓ - Boletim Informativo/Formativo há diversos depoimentos sobre a realidade deles. 

O BEÓ entrevistou os adolescentes entre 15 a 18 anos do sistema socioeducativo, sobre como os mesmos são vistos pela sociedade. "No meu bairro, em que eu nasci, não tem preconceito; nos outros lugares tenho que engolir seco", desabafa um dos meninos. Outro diálogo da roda de conversa que foi publicado no boletim mostra as dificuldades causadas pela cor da pele e a repressão que sentem no dia a dia: "As pessoas vêem a maldade no rosto... Um menino olhou para mim e atravessou a rua; deve ter visto a maldade na minha mente". Outro adolescente interpreta: "Deve ter sido porque você é preto, a roupa que você usa ele acha que é traficante, favelado, vai roubar".

Todos os relatos são parecidos e de carácter discriminatório. Um dos jovens lamentou que desde muitos séculos os pretos são considerados piores que os brancos. "Porque somos cachorros", conclui.  A psicanalista Cristiane Ribeiro, integrante da equipe Desembola na Ideia justifica a baixa autoestima desses adolescentes em situação de risco social e em conflito com a lei, pelas trajetórias marcadas desde o nascimento, por inúmeras violências e pelo baixo acesso aos direitos básicos. "O movimento é no sentido inverso; mesmo que as estatísticas mostrem o contrário, para o senso comum, é como se eles fossem os responsáveis pelos crimes mais hediondos que a sociedade vivencia", explica.

Olívia Loureiro Viana afirma que nas rodas de conversas com os jovens, os relatos são iguais e todos envolvem o racismo
Olívia Loureiro Viana afirma que nas rodas de conversas com os jovens, os relatos são iguais e todos envolvem o racismo
Foto: Divulgação

Essa invisibilidade destacada pela psicanalista também é observada por Olívia Loureiro Viana, artista e educadora da campanha. Ela relata que nas reuniões com os jovens das casas de semiliberdade, os participantes sempre reproduzem a mesma narrativa sobre eles serem os piores e mais errados da sociedade. A artista reflete sobre as elaborações dos jovens durante as produções na campanha: vai ganhando mais elementos, à medida em que vamos 'pescando' o que eles criam e falam. As experiências geram um adensamento dos sentidos produzidos.

Essa percepção foi confirmada também pelo educador Guilherme Pereira. Ele  ressalta o significado da expressão dos sentimentos dos jovens através das manifestações artísticas e educativas. "Dão grande importância à possibilidade de falar para os públicos para além deles próprios. O olhar do outro incide de forma muito forte na vida deles", diz. Ao divulgarem os trabalhos, eles se sentem importantes, como se a voz deles tivessem a mesma credibilidade das vozes sociais com as quais eles se relacionam, como os agentes de segurança e as escolas, por exemplo.

Guilherme Pereira acredita que dar destaque à voz do jovem periférico fortalece a autoestima desse público
Guilherme Pereira acredita que dar destaque à voz do jovem periférico fortalece a autoestima desse público
Foto: Divulgação

Os envolvidos no projeto acreditam que essas iniciativas não são suficientes para garantirem uma transformação social. Porém concordam que mudanças são construções históricas baseadas em processos de mobilização. A percepção e a ação de um grupo com problemas em comum abre caminho para o engajamento social.

As edições dos jovens participantes das campanhas vão desde criações de cartões postais e kits, até vídeos e podcasts. Todas as peças são disponibilizadas no site e nas mídias sociais do projeto Desembola na Ideia.

Sobre a AIC

A Agência de Iniciativas Cidadãs é uma organização da sociedade civil que surgiu através de um projeto de extensão da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Com quase 30 anos de atuação já desenvolveu mais de 100 projetos em prol da construção da cidadania.

Desenvolvimento humano, educação, comunicação e psicologia são algumas das áreas de atuação da organização. A cultura é uma das iniciativas mais aplicadas por despertar a criatividade, a valorização da identidade e a sensação de pertencimento do público jovem mais vulnerável.

A metodologia adotada inicia na formação de agentes multiplicadores, passa pela construção colaborativa de campanhas de comunicação, design colaborativo, diagnóstico e planejamento colaborativo para a criação de estratégias de facilitação de diálogo.

Durante a trajetória a AIC conquistou mais de 30 prêmios nacionais e internacionais concedidos por organizações como ONU Cidades, Unicef e Unesco.

ANF
Compartilhar
Publicidade
Publicidade