Brasileiro que recria figuras históricas em 3D já foi parado por réplica de cabeça em mala
Autodidata e superdotado, Cícero Moraes modela rostos com análise detalhada do crânio, digitalização em 3D e projeções virtuais
Dom Pedro I, Tutancâmon, Santo Antônio de Pádua e um semblante que poderia representar Jesus Cristo. Esses são alguns dos rostos trazidos "de volta à vida" por Cícero Moraes, brasileiro especializado em reconstruções faciais a partir de crânios antigos.
A trajetória do designer nascido em Chapecó (SC) não é nada óbvia. Seu interesse pela área surgiu em um período de ansiedade e depressão, após tomar um tiro de raspão na cabeça durante um assalto. Recluso, decidiu estudar reconstrução facial forense de forma autodidata, por curiosidade.
Em entrevista ao Byte, o designer conta que fechou seu primeiro projeto depois de um ano de estudo, reconstruindo 25 personalidades históricas. Cícero utiliza um programa gratuito chamado Blender 3D para realizar o trabalho, cujas extensões necessárias para a função foram idealizadas e programadas por ele próprio.
A boa notícia, segundo ele, é que não é necessário nenhum equipamento de ponta para quem quer começar a se aventurar por reconstruções faciais. As aplicações utilizadas pelo especialista rodam em computadores com memória RAM e processador comuns, amplamente disponíveis no mercado.
Atualmente, ele possui diversos projetos em andamento, incluindo a reconstrução facial de uma mulher com 45 mil anos. O processo, normalmente efetuado em projetos multidisciplinares que envolvem outros profissionais, inclui análise detalhada do crânio, digitalização em 3D e projeções virtuais.
A vida remontando rostos antigos já fez com que Moraes fosse parado em um aeroporto, quando o raio-x de sua mala mostrou aos oficais uma réplica 3D de uma cabeça de bebê. "Com os olhos assustados, me pediram para abrir a caixa para a avaliar o que tinha dentro", lembra.
A lista de honrarias acumuladas por Moraes é extensa. Seus trabalhos já lhe renderam títulos de doutor honoris causa em duas instituições diferentes, um recorde no Guinness, uma medalha por sua contribuição à história do Peru e reconhecimentos de diferentes governos internacionais.
Neste ano, foi aceito na Mensa Brasil, organização de pessoas superdotadas, por ter quociente de inteligência dentro da faixa de 2% do topo de testes de inteligência aprovados.
Como você entrou no ramo de reconstruções faciais?
Moraes: Em 2011, fui vítima de um assalto e levei um tiro de raspão na cabeça ao lutar contra dois ladrões. Consegui salvar a família da situação, mas isso fez com que eu desenvolvesse um quadro de ansiedade e depressão aguda. Para lutar contra esse estado, fiz o que sempre me foi uma fonte de alegria: estudar.
Como eu estava mal e sem perspectivas no momento, decidi estudar algo diferente, que sempre desejei, mas que não tive oportunidade de desenvolver.
Lembrei que quando era criança, no início dos anos 90, eu havia assistido uma matéria sobre reconstrução facial forense e aquilo me chamou a atenção. Comprei um livro em inglês (caro!) e comecei a ler e estudar.
Depois de pouco mais de um ano de estudo, fui contratado para a confecção de 25 reconstruções de personalidades históricas e da evolução humana. Dentre essas reconstruções estava a face de Santo Antônio, que contribuiu significativamente para que o meu trabalho se tornasse conhecido.
Já ocorreu algo inusitado ou inesperado durante alguma reconstrução?
Moraes: Uma vez reconstruímos a face de uma múmia cujo sexo definido pelos especialistas era o feminino. Depois que aproximamos, a face ficou exacerbadamente masculina, de modo que novos estudos foram efetuados e, de fato, se tratava de um indivíduo do sexo masculino.
Outra vez eu estava com a impressão 3D do busto de uma múmia bebê que reconstruímos em 2014 para publicarmos em um artigo científico. A cabeça estava em uma caixa de papelão lacrada que levei junto comigo em um voo. Quando a peça passou pelo raio-X, a responsável chamou outras especialistas e, com os olhos assustados, me pediram para abrir a caixa para avaliar o que tinha dentro.
No final, todos riram. O episódio se explica pela novidade da impressão 3D na época.
Quais as principais etapas do processo de reconstrução?
Moraes: Inicialmente é necessário que um especialista analise o crânio cuja face será reconstruída, identificando o sexo, idade e ancestralidade.
Com os dados em mãos eu sigo com a digitalização do crânio em 3D, ou seja, transporto ele para o mundo digital. Em um cenário virtual eu faço uma série de projeções, como a espessura da pele, a inclinação, comprimento e largura do nariz, a posição dos globos oculares, o tamanho das orelhas, dos lábios e outras estruturas, tudo baseado em dados estatísticos colhidos de mensurações efetuadas em tomografias de pessoas vivas.
Assim que a face básica é finalizada, a etapa seguinte é o acabamento, com a pigmentação da pele, a colocação dos pelos e cabelos, indumentária e a geração das imagens finais.
Qual foi a reconstrução facial mais difícil que você já fez?
Moraes: Uma das mais difíceis que eu participei foi a aproximação facial do Senhor de Sipán, do Peru. O crânio dele estava segmentado e deformado, de modo que tivemos que separá-lo em mais de 90 peças e remontá-las em um espaço tridimensional. Felizmente tudo deu certo e apresentamos a face em 2016.
Veja aproximação do Senhor de Sipán
Qual equipamento e programas usa, e qual a importância deles no processo?
Moraes: O processo pode ser efetuado em um máquinas com configurações modestas, disponíveis no mercado. Tendo um processador i5 para cima e 8GB de RAM para cima, já funciona bem.
Eu mesmo desenvolvo a extensão com os comandos necessários para o processo. Chama-se OrtogOnBlender, ela roda dentro do Blender 3D, é totalmente gratuita e de código aberto e roda nos três sistemas operacionais mais populares do mercado: o Windows, o Mac e o Linux.
Quais são seus atuais projetos em andamento?
Moraes: Tenho ao menos 15 projetos sendo desenvolvidos. O que esperamos publicar em breve é um que revelará a face de uma mulher de 45 mil anos.
Como você enxerga toda a repercussão que houve na representação que você fez de Jesus Cristo em 2018? Esperava que houvesse polêmica?
Moraes: Na verdade não é Jesus, é um rosto médio de habitantes da região onde ele supostamente viveu. Sempre que alguma figura religiosa popular é apresentada, desperta-se certa polêmica no debate público.
No caso do “Jesus”, houve uma intensa discussão acerca de como ele poderia de fato ter sido, imagino que tal situação se deva à imagem padrão que nós temos, muito influenciada por pintores europeus.
Mas isso também é esperado, uma vez que representar figuras religiosas tendo como base pessoas do local onde os pintores trabalhavam era uma prática comum.
Como você seleciona os projetos em que participa? Você tem mais afinidade por certos temas/épocas históricas?
Moraes: Geralmente escolho projetos que contenham algum interesse histórico ou cultural, relacionado a algo que estou estudando no momento. Atualmente, gosto de entender a questão estrutural na evolução humana, tanto nas regiões como a mandíbula quanto a do crânio. Então, tenho procurado crânios mais antigos para comparar com os modernos.
Como a descoberta de que é superdotado mudou sua vida?
Moraes: Ajudou principalmente no reconhecimento da minha sensibilidade frente aos estímulos que o mundo e a sociedade me bombardeiam. Hoje, entendo os meus limites, minhas características e isso ajudou muito na convivência com outras pessoas e comigo mesmo. A vida ficou mais leve.
Alguns de seus trabalhos ganharam notoriedade internacional. Como se sente sobre isso e que impacto isso tem na sua carreira?
Moraes: Tal notoriedade me honra imensamente, procuro com isso buscar novas parcerias e fortalecer as já existentes. Pouca gente sabe, mas o meu ganha pão majoritário é o desenvolvimento de tecnologias para o planejamento cirúrgico em humanos, e curiosamente muito do que utilizo e desenvolvo na área da reconstrução facial acaba ajudando na parte médica e vice-versa.
A rede de contatos vinda das reconstruções pode eventualmente ajudar com parcerias científicas e comerciais, então, acaba sendo bastante benéfico para ambos os lados.
Você atualmente vive de fazer reconstruções? É possível fazer disso uma atividade remunerada no Brasil?
Moraes: Hoje a minha maior fonte de renda está relacionada ao desenvolvimento de tecnologia para o planejamento cirúrgico em humanos, mas o trabalho com reconstruções tem garantido um ótimo complemento de renda.
É possível trabalhar com isso no Brasil, só é preciso ter bons contatos, entrar em projetos específicos ou mesmo explorar um nicho que necessite de tal abordagem.