'Eu ainda poderia viver mais 30 anos, mas quero morrer'; a permissão para eutanásia está indo longe demais no Canadá?

A BBC News explica como funciona a morte assistida no Canadá, onde alguns dizem que agora é mais fácil escolher morrer do que obter apoio para viver.

13 abr 2025 - 09h00
(atualizado em 17/4/2025 às 11h33)
'Não é assim que eu quero viver por mais 10, 20 ou 30 anos', diz April Hubbard
'Não é assim que eu quero viver por mais 10, 20 ou 30 anos', diz April Hubbard
Foto: BBC News Brasil

Aviso: esta reportagem contém detalhes e descrições que alguns leitores podem achar perturbadores

April Hubbard está sentada no palco do teatro onde planeja morrer ainda este ano.

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A artista performática e burlesca de 39 anos não tem uma doença terminal, mas recebeu uma aprovação para fazer morte assistida de acordo com as leis cada vez mais liberais do Canadá.

Ela está conversando com a BBC News no Bus Stop Theatre, um auditório íntimo com pouco menos de 100 lugares, na cidade de Halifax, na Nova Escócia, no leste do país.

Iluminada por um único holofote em um palco onde já se apresentou muitas vezes, ela diz que planeja morrer aqui "dentro de alguns meses" do iminente aniversário de 40 anos. Ela terá a companhia de um pequeno grupo de familiares e amigos.

April planeja estar em uma "cama grande e confortável" para o que ela chama de momento "comemorativo", quando um profissional de saúde vai injetar uma dose letal em sua corrente sanguínea.

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"Quero estar cercada pelas pessoas que amo, ter todos me abraçando em um abraço gigante e dar meu último suspiro, cercada de amor e apoio", diz ela.

April nasceu com espinha bífida e, mais tarde, foi diagnosticada com tumores na base da coluna vertebral que, segundo ela, a deixaram com dores constantes e debilitantes.

Ela toma analgésicos opioides fortes há mais de 20 anos, e solicitou a Assistência Médica para Morrer (Maid, na sigla em inglês) em março de 2023.

Embora ainda pudesse viver por décadas com sua condição, ela se qualificou para pôr fim à sua vida sete meses após a solicitação. Para pacientes terminais, é possível obter aprovação em 24 horas.

"Meu sofrimento e minha dor estão aumentando, e não tenho mais a qualidade de vida que me deixa feliz e realizada", conta April.

Toda vez que se move ou respira, ela diz que parece que os tecidos da base da sua coluna "são puxados como um elástico que se estica demais", e que seus membros inferiores a deixam em agonia.

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A BBC se encontrou com April no momento em que, a quase 4.800 quilômetros de distância, parlamentares estão analisando propostas para legalizar a morte assistida na Inglaterra e no País de Gales.

Eles votaram, em princípio, a favor destas propostas em novembro de 2024, mas meses de análise detalhada se seguiram — e mais votações em ambas as Casas do Parlamento são necessárias antes que o projeto possa se tornar lei.

Recentemente, a BBC testemunhou a morte de um homem na Califórnia, nos EUA, onde as leis de morte assistida são parecidas com as que estão sendo consideradas pelos parlamentares ingleses.

Os críticos dizem que o Canadá é um exemplo do efeito bola de neve — o que significa que, uma vez aprovada alguma lei que abra caminho para a assistência para morrer, ela inevitavelmente vai ampliar seu escopo e oferecer menos restrições.

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O Canadá tem hoje um dos sistemas mais liberais de eutanásia do mundo, semelhante ao que funciona na Holanda e na Bélgica.

O país introduziu a Maid em 2016, inicialmente para adultos com doença física grave e incurável, que causa sofrimento intolerável, em estado terminal.

Em 2021, o requisito de ter uma doença terminal foi removido. Dentro de dois anos, o governo canadense planeja abrir a Maid para adultos que tenham algum transtorno mental, mas nenhuma doença física.

Aqueles que se opõem à Maid dizem que a morte está passando a ser vista como uma opção de tratamento padrão para pessoas com deficiências e problemas de saúde complexos.

"É mais fácil no Canadá obter assistência médica para morrer do que obter apoio do governo para viver", diz Andrew Gurza, consultor de conscientização sobre deficiências e amigo de April.

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Andrew, que tem paralisia cerebral e usa cadeira de rodas, diz que respeita a decisão de April, mas afirma: "Se minha deficiência piorar e minhas necessidades de cuidados aumentarem, eu ainda gostaria de estar aqui. Saber que existe uma lei que diz que você pode facilmente acabar com sua vida é realmente assustador."

Andrew Gurza diz que ter apoio do governo canadense para morrer é mais fácil do que receber apoio para viver
Foto: BBC News Brasil

Antes de receber a aprovação da Maid, April foi avaliada por dois médicos independentes que foram obrigados a informá-la sobre formas de aliviar seu sofrimento e a oferecer tratamentos alternativos.

"As salvaguardas existem", diz ela, quando questionamos sobre as pessoas com deficiência que se sentem ameaçadas pela morte assistida, ou se a Maid está sendo usada como um atalho, em detrimento de um atendimento de melhor qualidade.

"Se não for o ideal para você, e você não estiver à frente do processo, escolhendo a Maid, você não terá acesso a ela", ela acrescenta.

Foram registradas 15.343 mortes por meio da Maid em 2023, o que representa cerca de uma em cada 20 de todas as mortes no Canadá — uma proporção que aumentou drasticamente desde 2016 e é uma das mais altas do mundo.

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A idade média dos solicitantes é 77 anos.

Em todos os casos, com exceção de alguns, a dose letal foi administrada por um médico ou enfermeiro — o que é conhecido como eutanásia voluntária.

Um médico com quem a BBC conversou, Eric Thomas, disse ter ajudado 577 pacientes a morrer.

Konia Trouton, presidente da Associação Canadense de Avaliadores e Provedores de Maid, também ajudou centenas de pacientes a morrer desde que a lei foi introduzida.

O procedimento é sempre o mesmo — ela chega à casa da pessoa que recebeu a aprovação para a Maid e pergunta se ela deseja seguir adiante com o procedimento naquele dia.

Trouton diz que os pacientes sempre orientam o processo e, na sequência, dão a ela o "aviso de que estão prontos".

"Isso me dá a honra, o dever e o privilégio de poder ajudá-los nesses últimos momentos com a família ao redor, com as pessoas que os amam ao redor, e saber que eles tomaram essa decisão de forma ponderada, cuidadosa e minuciosa", acrescenta.

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Se a resposta for "sim", ela abre sua maleta médica.

Ao demonstrar para a BBC o que acontece em seguida, Trouton coloca um torniquete no meu braço. Ela mostra onde a agulha seria inserida em uma veia nas costas da minha mão, para permitir uma infusão intravenosa de drogas letais.

Em sua maleta médica, ela também tem um estetoscópio.

"Estranhamente, hoje em dia eu uso mais para determinar se alguém não tem batimento cardíaco do que se tem", diz ela.

Cerca de 96% dos procedimentos da Maid estão dentro da categoria um, em que a morte é "razoavelmente previsível".

Trouton diz que isso significa que os pacientes estão em uma "trajetória em direção à morte", que pode variar de alguém com um câncer que se espalha rapidamente e tem apenas semanas de vida, ou alguém com Alzheimer "que pode ter de cinco a sete anos".

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Os outros 4% das mortes por Maid se enquadram na categoria dois.

São adultos, como April, que não estão morrendo, mas convivem com um sofrimento intolerável devido a uma "condição de saúde grave e irremediável".

Isso contrasta fortemente com o projeto de lei da deputada trabalhista britânica Kim Leadbeater para legalizar a morte assistida na Inglaterra e no País de Gales, que diz que os pacientes devem ter um prognóstico de morrer dentro de seis meses.

O projeto de lei em Westminster não permitiria que os médicos aplicassem uma dose letal — em vez disso, os pacientes teriam que autoadministrar os medicamentos, geralmente por via oral.

A morte por infusão intravenosa normalmente leva apenas alguns minutos, pois as drogas letais vão direto para a corrente sanguínea.

Já ao engolir um medicamento, os pacientes normalmente levam cerca de uma ou duas horas para morrer — mas podem levar muito mais tempo, embora geralmente fiquem inconscientes após alguns minutos.

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Trouton diz à BBC que considera o sistema canadense mais rápido e mais eficaz, assim como disseram outros provedores da Maid.

"Me preocupa se algumas pessoas não conseguirem engolir [o medicamento] devido às consequências da doença. E se não conseguirem tomar toda a quantidade de medicamento devido a dificuldades respiratórias ou de deglutição, o que vai acontecer?", questiona.

'O Canadá caiu de um penhasco'

Mas críticos argumentam que a eutanásia voluntária no Canadá está sendo usada como uma alternativa mais barata à assistência social ou médica adequada.

Um deles é Ramona Coelho, médica na província de Ontário, cuja clínica atende a muitos grupos marginalizados e àqueles que estão lutando para obter assistência médica e social.

Ela faz parte do Comitê de Revisão da Maid, assim como Trouton, que analisa casos na província.

Coelho afirma à BBC que a Maid está "fora de controle".

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"Eu nem chamaria isso de bola de neve", diz ela.

"O Canadá caiu de um penhasco."

A médica Ramona Coelho diz que quer ajudar os pacientes a viver
Foto: BBC News Brasil

"Quando as pessoas têm pensamentos suicidas, costumávamos atendê-las com terapia e assistência. No caso de pessoas com doenças terminais e outras doenças, podíamos mitigar esse sofrimento e ajudá-las a ter uma vida melhor", ela afirma.

"No entanto, agora estamos vendo isso como um pedido apropriado para morrer e acabar com a vida muito rapidamente."

Enquanto a reportagem da BBC estava na clínica de Coelho, fomos apresentados a Vicki Whelan, uma enfermeira aposentada cuja mãe, Sharon Scribner, morreu em abril de 2023 com câncer de pulmão, aos 81 anos.

Vicki contou à BBC que, nos últimos dias de sua mãe no hospital, a equipe médica ofereceu a ela várias vezes a opção da Maid — o que ela descreveu como um "papo de vendedor".

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A família, que é católica, solicitou a alta da mãe para que ela pudesse morrer em casa, onde Vicki diz que ela teve uma "morte linda e tranquila".

"Isso nos faz pensar que não conseguimos aguentar, que não podemos sofrer um pouco e que, de alguma forma, agora foi decidido que a morte precisa ser assistida."

"De repente, agora estamos dizendo às pessoas que essa é uma opção melhor. Esta é uma saída fácil, e acho que está simplesmente roubando a esperança das pessoas."

'Não é assim que eu quero viver'

O Canadá é, então, um exemplo do efeito bola de neve? Certamente é verdade que os critérios de elegibilidade foram ampliados drasticamente desde que a lei foi introduzida há nove anos — portanto, para os críticos, a resposta seria um enfático "sim", e serviria de alerta para a Grã-Bretanha.

As leis de morte assistida do Canadá foram impulsionadas por decisões judiciais.

A Suprema Corte do país comunicou ao Parlamento que a proibição a esses procedimentos violava a Carta Canadense de Direitos e Liberdades.

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A extensão da elegibilidade para aqueles que não estavam em estado terminal foi, em parte, uma resposta a outra decisão judicial.

Na Grã-Bretanha, os juízes das mais altas cortes têm dito repetidamente que qualquer possível mudança na lei sobre a morte assistida é uma questão para o Parlamento — depois que pessoas como Tony Nicklinson, Diane Pretty e Noel Conway entraram com processos argumentando que a proibição geral da morte assistida violava seus direitos humanos.

April sabe que algumas pessoas podem olhar para ela, uma mulher jovem, e se perguntar por que ela escolheria morrer.

"Somos mestres em mascarar e não deixar que as pessoas vejam que estamos sofrendo", diz ela.

"Mas, na verdade, há dias em que eu simplesmente não consigo esconder. Há muitos dias em que não consigo levantar a cabeça do travesseiro e não consigo mais comer."

"Não é assim que eu quero viver por mais 10, 20 ou 30 anos."

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*Reportagem adicional de Joshua Falcon

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