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Vivemos em uma ‘cultura tóxica’ que nos adoece, diz Gabor Maté; leia entrevista

Médico especialista em trauma, vício e saúde mental discute como a cultura atual frustra necessidades humanas básicas

25 ago 2025 - 17h33
Resumo
Gabor Maté aponta que a cultura atual, focada em materialismo e desconexão, gera um ambiente tóxico que frustra necessidades humanas básicas, contribuindo para crises de saúde mental, vícios e doenças, enquanto soluções passam por apoio emocional e mudanças sociais profundas.
O médico húngaro-canadense Gabor Maté é autor do best-seller 'O Mito do Normal'
O médico húngaro-canadense Gabor Maté é autor do best-seller 'O Mito do Normal'
Foto: Gurudayal Khalsa/Divulgação

“Na sociedade mais obcecada por saúde que já existiu, as coisas não vão nada bem”. É com esse diagnóstico - nada alentador - que o médico húngaro-canadense Gabor Maté começa um dos seus mais recentes livros, o best-seller O Mito do Normal, no qual defende que a sociedade atual normalizou comportamentos tóxicos e destrutivos que justificam o aumento “sem precedentes” de problemas de saúde físicos e mentais. “Nos Estados Unidos, que é o país mais rico e poderoso do mundo, 70% dos adultos tomam pelo menos um medicamento e 40% tomam dois. O que isso nos diz?”, provoca.

Estresse crônico, preocupação exagerada com a aparência, falta de conexão com si próprio e com os filhos são alguns dos fatores citados pelo especialista para justificar por que vivemos epidemias de doenças como depressão e ansiedade mesmo diante do enorme avanço científico observado nas últimas décadas. Em entrevista exclusiva ao Estadão, Maté diz que as patologias não são apenas questões individuais, mas uma resposta do corpo e da mente a uma cultura tóxica que nos adoece.

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Maté, um dos maiores estudiosos de trauma, vício e saúde mental, e voz popular também nas redes sociais - só no Instagram, são mais de 4 milhões de seguidores - , falará ao público brasileiro no próximo dia 26 de agosto, quando participa do Encontro Futuro Vivo, conferência promovida pela Vivo que reunirá especialistas brasileiros e estrangeiros para debater desafios ambientais e sociais.

Entre os temas que serão discutidos estão mudanças climáticas, saúde mental, relações humanas e tecnologia. A programação completa e o formulário de inscrição para acompanhar a conferência online podem ser acessados no site do evento. O encontro terá transmissão ao vivo pelo portal Terra.

No evento, Maté falará sobre a relação entre o tempo de tela e a saúde mental. O uso excessivo de redes sociais e outras tecnologias está sendo apontado como o responsável pelo aumento de transtornos mentais entre crianças e adolescentes. Para o médico, porém, a discussão deve ser aprofundada.

“Quando você pergunta sobre adolescentes e crianças viciados em internet, eles estão tentando acalmar algo. Estão tentando acalmar seu isolamento, sua ansiedade, seu vazio. Estão tentando obter validação de seus pares porque lhes falta um senso de valor, pois os adultos em suas vidas não os fizeram se sentir amados, aceitos e dignos exatamente como são”, afirma.

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Na entrevista, além de detalhar como enfrentarmos comportamentos nocivos tidos como normais, Maté fala sobre os caminhos para criar filhos saudáveis mesmo em meio ao estresse crônico e a uma crescente dependência de tecnologias. Explica ainda por que um estilo parental permissivo pode ser ainda pior do que o autoritário e faz alertas sobre como a inteligência artificial pode dificultar ainda mais as relações humanas. O médico também revela de que forma enxerga a preocupação excessiva da sociedade brasileira com a beleza e como lidar com traumas e ter melhor saúde mental mesmo em um contexto de desigualdade como o brasileiro.

Leia abaixo os principais trechos da conversa.

No seu livro ‘O Mito do Normal’, o senhor descreve nossa cultura atual como tóxica. O senhor poderia explicar o que quer dizer com isso e como essa toxicidade contribui para os crescentes níveis de doenças em nossa sociedade hoje?

Em termos médicos, se você colocar microrganismos em uma placa de laboratório, isso é chamado de cultivá-los, de colocá-los em uma cultura. Se eles prosperarem, se desenvolverem bem e se proliferarem, então você diria que é uma cultura saudável. Mas se muitos deles começassem a morrer ou a adoecer, então você diria que é uma cultura tóxica, ou seja, há algo de errado com o ambiente.

Agora, se você olhar para a sociedade ocidental ou global, há taxas crescentes de vício, todos os tipos de diagnósticos de saúde mental, doenças autoimunes, muitos tipos de câncer estão em ascensão, muitas crianças estão sendo diagnosticadas com problemas de atenção e de comportamento.

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Bem, os seres humanos também vivem em uma cultura. E somos tão afetados pelo ambiente quanto os microrganismos na placa de laboratório. É isso que estou dizendo. Estamos vivendo em uma cultura tóxica. Então, nos Estados Unidos, que é o país mais rico e poderoso do mundo, 70% dos adultos tomam pelo menos um medicamento e 40% tomam dois. O que isso nos diz?

E quais são as principais razões para isso? Algumas pessoas argumentam que no passado vivíamos em tempos mais difíceis: tínhamos mais guerras, maior injustiça e desigualdade e menos conhecimento científico, mas, ainda assim, o senhor e outros especialistas afirmam que a sociedade moderna está nos adoecendo de uma forma sem precedentes. Por que isso acontece?

Bem, é preciso começar com quais são as necessidades humanas. E as necessidades humanas não são teóricas, elas vêm da evolução. Então, as crianças têm a necessidade de segurança emocional absoluta, de serem aceitas, amadas por quem são, de poderem vivenciar suas emoções, que podem ser o luto, a alegria, a raiva, o medo, seja o que for. Elas têm a necessidade de pertencimento. Essas necessidades são tão importantes quanto o oxigênio. Agora, quanto menos a cultura consegue atender a essas expectativas, mais tóxica ela é.

Adultos têm necessidades. Essas necessidades não são arbitrárias. Elas incluem um senso de pertencimento, um senso de conexão, de significado, de propósito. Se você olhar para a evolução humana por milhões de anos, e incluindo até mesmo a nossa própria espécie até 10 ou 15 mil anos atrás, era assim que vivíamos. Em comunidade. Mas a sociedade capitalista globalizada nos diz que os seres humanos são competitivos, agressivos, egoístas, individualistas.

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Então, o que estou dizendo é que a toxicidade da cultura tem a ver com a forma como ela frustra as necessidades humanas. E sim, temos mais riqueza, mas essa riqueza é distribuída de forma mais desigual do que nunca na história da humanidade. Se você olhar para a desigualdade, quanto mais desigualdade, mais doenças existem, mais vícios existem, mais problemas de saúde mental existem.

O senhor acha que, embora tenhamos mais informações sobre saúde mental hoje em dia, talvez não tenhamos um espaço seguro para expressar isso?

Em primeiro lugar, sim, temos mais informações sobre questões de saúde mental, mas muitas dessas informações são falsas ou incompletas, pois a maioria dos médicos são treinados para ver os problemas de saúde mental como questões biológicas relacionadas à fisiologia do cérebro. Mas o que não lhes é ensinado é que a fisiologia do cérebro se desenvolve em interação com o ambiente, de modo que as próprias estruturas no cérebro que estão implicadas no vício ou em problemas de saúde mental, na verdade, se desenvolvem desde o útero em interação com o ambiente emocional.

O segundo ponto é que, para que as crianças se sintam livres para se expressar, elas precisam se sentir realmente seguras. De que sua autoexpressão não colocará em risco o relacionamento com seus pais. Muitos dos conselhos sobre parentalidade que as pessoas recebem hoje em dia são sobre como controlar o comportamento das crianças. E quando uma criança realmente expressa o que sente, ela recebe a mensagem de que não é aceitável para os pais. Portanto, para se sentirem pertencentes e aceitas pelos pais, elas precisam reprimir o que realmente sentem.

Essa repressão das emoções tem um impacto. E isso, novamente, é algo que não é ensinado aos médicos. É cientificamente claro, mas não ensinam a eles que a mente e o corpo são inseparáveis. De modo que o sistema imunológico, os hormônios, o sistema nervoso e o sistema emocional são um único sistema. Então, quando reprimimos uma parte dele, na verdade estamos afetando todas as outras partes. Olhando para a depressão ou para muitas condições físicas, a dinâmica emocional, embora não seja a única causa, é um importante fator contribuinte.

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"Para se sentirem pertencentes e aceitas pelos pais, as crianças precisam reprimir o que realmente sentem. Essa repressão das emoções tem um impacto." - Gabor Maté

Quando falamos de avanços da Medicina, vem ganhando força a Medicina de Precisão, com testes genéticos e outros exames e terapias avançadas. Como incorporar a questão da saúde emocional nesse modelo biomédico?

Em primeiro lugar, sou totalmente a favor da ciência. Como médico de formação, fico impressionado com o que a ciência médica foi capaz e continua a alcançar. Portanto, não se trata de rejeitá-la agora. Então, vamos dar toda a ajuda útil da medicina individualizada que pudermos dar às pessoas. Mas que tal também conversarmos com elas sobre o estresse em suas vidas? Que tal ajudá-las a curar o trauma para que não continuem se estressando? Vamos juntar tudo isso: as incríveis conquistas da ciência moderna e toda a pesquisa e conhecimento que temos sobre a unidade mente-corpo e a importância de curar o estresse e o trauma. E isso está completamente ausente na formação médica.

Deixe-me dar dois exemplos. Estudos mostraram que quanto maior o grau de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) de uma mulher, maior o risco de câncer de ovário. O outro exemplo é, se você olhar para a pesquisa sobre esclerose múltipla na década de 1930, a proporção entre homens e mulheres com a doença, pelo menos na América do Norte, era de 1 para 1. Sabe qual é a proporção de gênero agora? Três mulheres para cada homem. Claramente, os genes não mudaram, certo? Porque os genes não mudam em 80 anos. Isso tem tudo a ver com o ambiente. Se você olhar para as pesquisas sobre esclerose múltipla, muitas pesquisas consistentes mostram, por exemplo, que se você sofreu abuso sexual ou abuso emocional, seu risco de esclerose múltipla aumenta. Quanto mais estresse você vivencia, maior o risco de uma crise.

Ainda no seu livro, o senhor compara as nossas vidas atuais às de ratos de laboratório expostos a estresse crônico incontrolável. Como as pessoas podem lidar com isso, especialmente em lugares como o Brasil, onde temos um nível enorme de desigualdade, pobreza e insegurança?

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Não estou em posição de dizer aos brasileiros como administrar sua sociedade. O que eu sei é que, historicamente, tem sido uma sociedade com muito estresse, com muita desigualdade racial, um tremendo ataque aos povos indígenas, a destruição da Amazônia. Mas também conhecemos a tremenda criatividade, vitalidade e o espírito do povo brasileiro.

É por isso que o livro se chama “O Mito do Normal”. Presumimos que aquilo a que estamos acostumados é normal. Mas vamos reconhecer que isso não é normal. É preciso começar com esse reconhecimento. Não é como deveríamos ser. Não é como fomos criados. Não é como evoluímos. Essa conversa precisa acontecer. É simplesmente não presumir que aquilo a que estamos acostumados é normal. Isso é no nível social.

No nível individual, as pessoas podem curar seus traumas. Elas podem trabalhar nisso. A questão com o trauma é que ele lhe dá uma certa visão do mundo, do seu lugar no mundo, do seu valor como ser humano e de como você se sente sobre si mesmo. Tudo isso pode mudar. Você precisa de apoio, precisa de ajuda, mas isso pode mudar. E mesmo que o mundo não mude, pelo menos sua relação com o mundo pode mudar. Você não precisa pensar que é inevitável. Você não precisa acreditar que é apenas uma criaturinha pequena e indefesa à mercê do mundo. Você pode, na verdade, assumir algum controle. Pode tomar decisões em sua vida pessoal.

Você pode começar a dizer não para pessoas que não te apoiam ou que te machucam. Você pode, na medida do possível. Agora, quando você é muito pobre e oprimido, é muito difícil tomar essa decisão.

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No seu livro, o senhor diz que “o trauma é muitas vezes não verbal, armazenado no corpo e não na memória consciente”. Como as pessoas podem começar a reconhecer esses traumas invisíveis em seus comportamentos quando adultos? E como superá-los?

Em primeiro lugar, geralmente algo acontece para te despertar. Se eu continuo reagindo de forma desproporcional a pequenos estímulos como se minha vida estivesse em perigo, em algum momento eu tenho que começar a me perguntar: “O que está acontecendo aqui?”. Então você começa a procurar a origem daquilo.

O segundo ponto é que as pessoas passam por crises. Em um certo período, nos meus 40 anos, eu era um médico de sucesso e era pai, mas estava deprimido e tinha um profundo sentimento de frustração por sentir que tinha algum tipo de potencial que não estava expressando. E isso é sempre algo bom. Quando você tem essa frustração, significa que há algo que você poderia olhar para talvez se libertar. Ou há um divórcio, ou uma doença que acontece. E essas crises em nossas vidas podem, na verdade, nos despertar para começar a procurar.

Agora, o processo de cura é longo. A propósito, eu não sou a autoridade final em cura. Existem muitas abordagens de cura, muitas delas excelentes. Minha maneira particular é uma delas, existem muitas outras. Mas, para dizer de forma simples, pelo menos em inglês, a palavra “cura” (healing) ou “saúde” (health) vem da palavra “totalidade” (wholeness). Então, curar é ser inteiro. O trauma significa um tipo de quebra da nossa totalidade. E a cura significa encontrar essa totalidade novamente. E há muitas maneiras, mas tem muito a ver com se conectar com nossos corpos. Muitas pessoas estão desconectadas de seus corpos. E no Brasil, há uma terrível... quero dizer, obviamente não sou um especialista na sociedade brasileira, mas se posso me referir a isso, há a famosa cirurgia de glúteos brasileira (Brazilian Butt Lift). Ela já matou muitas mulheres.

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"O trauma significa um tipo de quebra da nossa totalidade. E a cura significa encontrar essa totalidade novamente. E há muitas maneiras, mas tem muito a ver com se conectar com nossos corpos" - Gabor Maté

E o Brasil é o País que mais faz cirurgias plásticas no mundo…

Sobre o que é isso? É sobre a rejeição das pessoas como elas são. É sobre autorejeição. É sobre a crença de que não sou inteiro. Não sou bom o suficiente. A menos que eu tenha uma certa aparência. A menos que meu bumbum tenha uma certa aparência. Ou meu nariz, ou meu rosto. Mas sobre o que é isso? Significa uma rejeição total da humanidade das pessoas. Porque a natureza ou Deus, quem quer que seja, nos criou em todos os tipos de formas, tamanhos e feitios. E então, essa rejeição do nosso eu físico é, em si, a doença.

Estávamos falando sobre comportamentos prejudiciais que consideramos normais e não deveríamos. Mas o senhor também fala no seu livro sobre uma nova visão do “normal”. Como é essa nova visão em termos práticos?

Significa reconhecer as necessidades humanas. Significa reconhecer que os bebês precisam ser segurados no colo. Não colocados para dormir sozinhos em um quarto separado. Que é a maneira como temos dito às pessoas para fazerem há décadas.

Se você conversar com mães que seguiram esse conselho médico para “treinar o sono” de seus bebês, o que significa separá-los, colocá-los no berço e não pegá-los no colo, e perguntar a elas: “Como você se sente quando seu bebê está chorando?”. Elas dizem: “Meu coração fica partido”. Elas estão indo contra seus próprios instintos.

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Então, em primeiro lugar, vamos prestar atenção aos nossos instintos. A natureza nos deu instintos por um bom motivo. Isso também significa apoiar as mulheres grávidas, porque o estado emocional da mulher durante a gravidez já afeta o desenvolvimento cerebral da criança. Então, que tal se o “normal” significasse dar às mulheres grávidas o apoio de que elas precisam? Vamos dar às famílias jovens o apoio para que possam cuidar de seus filhos.

Nas escolas, as crianças não deveriam ser punidas, ameaçadas ou avaliadas o tempo todo. Elas deveriam ser apoiadas e autorizadas a brincar e a se expressar. Isso é o normal. É assim que os seres humanos deveriam ser. Não estou dizendo que devemos voltar para a floresta ou viver na selva. O que estou dizendo é: com toda a consciência, toda a riqueza e todas as capacidades que temos, que tal criarmos uma sociedade que esteja alinhada com as necessidades humanas? Isso seria o normal.

E quanto aos adultos? Quero dizer, também estamos vendo um tipo de toxicidade em nossa cultura como adultos, como excesso de trabalho, a valorização de coisas materiais, influenciadores digitais ostentando posses...

Este é um dilema antigo. E a sociedade capitalista levou esse materialismo ao seu nível mais alto possível na história da humanidade. E esses influenciadores, se você olhar para eles de um certo ponto de vista, eles são ridículos. E se você olhar para a vida de muitas dessas pessoas, elas são infelizes. Acredite em mim, eu já lidei com celebridades. Por quê? Porque aquilo a que eles são viciados — a aquisição e a construção do ego — vai contra as suas necessidades. Então, o que dá poder a esses influenciadores é a ideologia que diz que você importa se tiver tal aparência, ou se adquiriu tanto, ou conquistou tanto, ou impressionou tantas pessoas. Então você tem valor. Mas a ideia de que temos valor não porque possuímos, controlamos, temos ou projetamos uma certa imagem, mas porque somos seres humanos... essa é uma ideia simples. Então há uma desconexão real entre a verdadeira natureza e os verdadeiros desejos das pessoas e o que a sociedade lhes diz que é realmente importante.

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"A sociedade capitalista levou esse materialismo ao seu nível mais alto possível. E esses influenciadores, de um certo ponto de vista, eles são ridículos. E se você olhar para a vida de muitas dessas pessoas, elas são infelizes." -  Gabor Maté

Um de seus livros é sobre o vício. E o senhor sempre diz em suas entrevistas que no vício não deveríamos perguntar “por que o vício?”, mas sim “qual é a dor?”, que o vício é uma resposta à dor emocional. Considerando a crescente preocupação com nossa dependência por tecnologias e telas, especialmente entre adolescentes, podemos dizer que isso também é uma resposta a dores emocionais?

Não há substância ou comportamento que sejam viciantes em si mesmos, incluindo as telas. Por exemplo, a tecnologia é maravilhosa. Você e eu não poderíamos ter esta conversa sem essa tecnologia. É ótimo. Mas sob certas circunstâncias, na vida de certas pessoas, você pode se tornar viciado. O vício se manifesta em qualquer comportamento no qual a pessoa encontra prazer ou alívio temporário e, portanto, deseja aquilo, mas depois sofre consequências negativas e não desiste apesar das consequências negativas. Então: prazer, desejo, alívio a curto prazo; prejuízo ao longo do tempo; e incapacidade ou recusa em desistir.

Então, pode ser heroína, álcool, cocaína, sexo, jogo, compras, internet, videogames, esportes radicais, qualquer coisa. Não é o comportamento, é a sua relação com ele. Então, quando você pergunta sobre adolescentes e crianças viciados em internet, eles estão tentando acalmar algo. Estão tentando acalmar seu isolamento, sua ansiedade, seu vazio. Preenchendo-o de fora. Eles estão tentando obter validação de seus pares porque lhes falta um senso de valor, pois os adultos em suas vidas não os fizeram se sentir amados, aceitos e dignos exatamente como são. Quero dizer, há muitas razões por trás disso. Então, você pode usar as telas de uma forma maravilhosa, mas também pode usá-las de forma viciante.

Além disso, foi demonstrado que, quanto mais novas as crianças que usam telas, mais seus cérebros são afetados de forma negativa. Elas realmente se tornam fisicamente viciadas nisso. E se uma criança de 4 anos se vicia em uma tela, quando ela tiver 11 anos e você tentar tirá-la da tela, é como tentar tirar um viciado em drogas de seu ópio: raiva, negação e desespero.

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Desde o ano passado, houve uma certa controvérsia com o lançamento do livro Geração Ansiosa, de Jonathan Haidt, porque alguns especialistas consideram que a proibição de celulares e redes sociais até uma certa idade não resolveria o problema do aumento de transtornos mentais entre jovens. Qual é a sua opinião sobre isso?

Primeiramente, isso é simplificar um problema importante sem entendê-lo. Porque o problema não é a rede social. O problema é a relação das crianças com o mundo adulto. Fui coautor de um livro chamado, em inglês, “Hold on to Your Kids”. É sobre como as crianças precisam de relacionamento com adultos que as nutrem. Na ausência desses relacionamentos, seus cérebros não conseguem lidar com a falta de um relacionamento, então eles se voltam para quem quer que esteja por perto. E é isso que dá poder às redes sociais. Então, a questão principal não é a rede social. A questão principal é com quem é o relacionamento primário de nossas crianças. Porque, se a criança está conectada aos adultos, ela seguirá a orientação dos adultos. E então os adultos podem estabelecer limites.

Agora, se eu fosse um jovem pai hoje, eu não deixaria meu bebê perto de uma tela por anos. Mas eu me certificaria de que eles tivessem em suas vidas muita brincadeira, conexão e diversão. Além disso, conforme se torna apropriado para a idade, podemos apresentar as telas às crianças, mas sob a orientação dos adultos. O problema não são as telas, é a falta de orientação adulta. Agora, quando uma criança se torna adolescente e está apegada aos pares, é impossível proibi-la de qualquer coisa. Porque você não tem o poder. Porque a única coisa que lhe dá o poder de guiar as crianças é se elas estiverem conectadas a você, se elas o respeitarem.

Se eu pudesse administrar as escolas, eu não permitiria celulares nelas. Os computadores estariam lá apenas para fins acadêmicos. E se eu tivesse filhos pequenos, não os deixaria perto de nenhum tipo de tela. Isso é totalmente verdade. Mas a questão real é quem as crianças estão seguindo... Essa é a questão principal. Agora, o livro de Haidt ignora isso. Ele foca puramente na tecnologia.

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O senhor mencionou em outra resposta que devemos seguir os instintos de cuidar das crianças e atender às suas necessidades, mas, por outro lado, temos uma discussão hoje de que os adolescentes e jovens da Geração Z foram muito mimados e que os pais são muito permissivos, que não deixam seus filhos sentirem frustração. Como buscar esse equilíbrio de dar apoio emocional, mas, ao mesmo tempo, dar autonomia e impor limites?

Sim, a questão é a seguinte: a frustração vai acontecer na vida. Porque você não vai conseguir tudo o que quer. Se você está tentando proteger seus filhos da frustração, não está lhes fazendo nenhum favor. Então, o exemplo que sempre dou é: você tem um filho de 2 anos, é hora do jantar, mas meia hora antes, a criança de 2 anos quer um biscoito. E você diz não. A criança de 2 anos, então, não consegue o que quer. Ela fica frustrada. Você estaria lhe fazendo um favor se desse o biscoito? Não.

Por outro lado, se ela ficar chateada porque não ganhou o biscoito, não a puna por estar chateada também. Então, dê a eles a chance de se expressarem sem puni-los, mas, ao mesmo tempo, não tente protegê-los das frustrações necessárias da vida. Os pais dos quais você está falando têm medo das emoções de seus filhos porque têm medo das suas próprias emoções. Então, na verdade, eles não estão ajudando a criança.

Temos o que se pode chamar de três estilos de parentalidade. Existe a parentalidade autoritária, que é toda sobre controle e punição. É muito popular, sabe. Depois, há a permissiva. E depois há o que podemos chamar de parentalidade com autoridade (authoritative). Na qual o pai/mãe está no comando, mas não como um ditador, não como um governante severo, mas como alguém cuja autoridade a criança pode respeitar. Mas, dos três, o pior é o permissivo.

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Pior que o autoritário?

Sim, porque no (estilo) autoritário, a criança pelo menos sente que alguém se importa com ela. Eu não o recomendo. Não é tão ruim quanto o permissivo, mas também não é bom. O que precisamos é da parentalidade com autoridade, em que estabelecemos os limites.

"Os pais dos quais você está falando têm medo das emoções de seus filhos porque têm medo das suas próprias emoções. Então, na verdade, eles não estão ajudando a criança." - Gabor Maté, sobre pais muito permissivos

Agora estamos vendo outro fenômeno que é a inteligência artificial generativa. O senhor vê um risco de as pessoas desenvolverem algum tipo de apego emocional ou mesmo vício nesses chatbots?

Com a IA, as pessoas perdem a capacidade de ter suas próprias palavras. A individualidade se torna genérica. Há um perigo enorme de as pessoas perderem sua voz real.

O ponto final é quem vai usá-la e para qual finalidade? Eu não confio no sistema. Portanto, não confio em como a IA será usada. Será usada, inevitavelmente, para aumentar o controle, para aumentar o lucro, para aumentar o privilégio da elite. Não precisa ser assim. É uma questão de quem toma essa decisão.

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Como resistir à tentação de usar essas ferramentas de IA para tudo? Como buscar um equilíbrio e usá-las de forma a não desenvolver uma dependência nelas?

Eu diria: pergunte às pessoas quais são suas intenções. Então, antes de se envolver em uma atividade, que resultado você quer daquela atividade? Se você quer apenas um texto publicitário que soe bem, suponho que não importa se é a IA ou uma pessoa que o escreve. Mas se você quer expressar a alma, a criatividade e a individualidade de alguém, continue com o método humano. Depende de quais são suas intenções.

E também, qual é o contexto? Se a IA vai resultar (não sei se vai, mas ouvi essa preocupação) na perda de empregos para as pessoas... Bem, isso pode servir ao interesse de alguém a curto prazo, mas serve ao interesse da sociedade a longo prazo?

Se você está substituindo seres humanos, o que isso faz aos seres humanos quando você lhes diz que foram substituídos por uma máquina? Claro, há muitas situações em que é ótimo para os seres humanos. Você não quer pessoas cavando com pás e gravetos quando há uma máquina que pode fazer isso. Mas temos que continuar nos perguntando: qual é a intenção desta atividade e qual será o impacto social?

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Que conselho o senhor daria especialmente a pais e educadores que buscam criar filhos saudáveis neste mundo cada vez mais moldado por tecnologias digitais e estresse crônico?

O que precisa ser compreendido é que toda a ciência nos mostra a importância dos primeiros três anos, especialmente para o desenvolvimento do senso de si mesmo de uma pessoa, de como ela se sente no mundo, de suas próprias estruturas cerebrais, seus circuitos cerebrais, a química do cérebro.

Tudo isso é moldado em grande parte no útero e nos primeiros três anos. Agora, se você olhar para os povos indígenas, eles amamentavam seus bebês até cerca de quatro anos e meio. Não exclusivamente, mas era quando começavam a desmamar. Foi assim por milhões de anos. Então, se voltássemos e realmente entendêssemos quais são as necessidades da criança, e apoiássemos as famílias jovens e as mulheres grávidas a atenderem às suas próprias necessidades para que possam atender às necessidades de seus filhos, então, o que quer que acontecesse mais tarde poderia ser lidado de forma muito melhor.

Temos tanta informação, tanta ciência, tanta ciência do cérebro, tanta literatura sobre desenvolvimento. Isso poderia ser facilmente feito se a sociedade entendesse a importância disso. E seria muito menos caro do que o custo de não prestar atenção a isso e ter que lidar com as consequências mais tarde, com dificuldades de aprendizagem, problemas de comportamento, criminalidade, vícios... Então, vamos entender a influência formativa e dominante do ambiente no desenvolvimento infantil, especialmente nos primeiros três anos.

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