O lixo virou uma oportunidade para os moradores de Sá Viana, no Complexo do Andaraí, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Se antes era comum ver resíduos espalhados pelas ruas da comunidade --causando transtornos e até doenças--, agora, boa parte desse lixo ganha um destino mais adequado com um grande valor agregado. E não só valor ambiental, mas também valor financeiro para as famílias.
- Essa reportagem faz parte da série Quebrada Sustentável, que aborda iniciativas de sustentabilidade dentro de comunidades periféricas no Brasil. O Terra conheceu projetos criados ou desenvolvidos pela própria população em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.
Por lá, latinhas, tampinhas, garrafas pets ou qualquer outro tipo de material reciclável --que inclui até o óleo de cozinha-- podem virar um kit com produtos de limpeza variados. A troca, que tem trazido uma significativa economia nas despesas mensais dos participantes, é viabilizada pelo Projeto Social Moral de Cria, fundado em 2018.
Com o objetivo de incluir os moradores de Sá Viana em discussões e práticas que moldam a sociedade atual, a organização promove atividades de dança, aulas de teatro e percussão, além de passeios em conjunto com outras associações. Entretanto, um dos pilares do projeto é o EcoMoral, um programa que visa orientar as famílias do complexo sobre a importância da separação, descarte e reciclagem adequados do lixo doméstico.
"A ideia surgiu por ter que passar todo dia em cima do lixo, sabe? Gerou a vontade de tirar aquele lixo dali e mudar ele de alguma maneira" --Jaqueline Carina Bispo
Aos 40 anos, Jaqueline Carina Bispo é a idealizadora do Moral de Cria e é conhecida nas redondezas como 'Jaque Favela'. "Quando eu morrer, quero deixar alguma coisa. E quem faz as coisas no território de favela são os favelados. É a gente que está aqui todo dia", conta ela, ao receber a reportagem do Terra em uma horta comunitária, criada em um espaço que vivia abandonado na comunidade.
Natural de Penedo, em Alagoas, e mãe de três filhos, Jaque mora na Sá Viana desde os oito anos. Ao detalhar a dinâmica do EcoMoral, ela ressalta que, ao serem ensinadas a organizar corretamente o lixo, cerca de 150 famílias são contempladas com um kit limpeza. As trocas são feitas sempre aos sábados, das 14h às 16h, em pontos de coleta definidos pelos líderes do projeto, que também conta com a ajuda de voluntários.
"A gente tem um grupo para falar sobre a coleta e sobre o reciclável. As famílias levam tudo separadinho. Aí, de três em três semanas, a gente junta uma quantidade e leva no ferro-velho para vender. Depois a gente vai ao mercado para fazer a compra do kit, que leva de oito a dez produtos. São produtos importantes, como sabão, água sanitária, sabão em pó e bucha", explica.
Deste modo, para obter o kit, as famílias se organizam para reunir a quantidade de lixo necessária. "O kit é pago a partir da movimentação de cada família. A gente não tem nenhum investimento", complementa. Para organizar toda a logística de compra, armazenamento e entrega, Jaque dirige uma Kombi, branca, em condições delicadas, mas muito valorizada. "Ela (Kombi) se chama Berenice. Às vezes, não anda nem para frente e nem para trás. É todo um trâmite", diverte-se.
Orgulhosa dos resultados obtidos com a iniciativa, a líder comunitária destaca a disciplina das famílias e o impacto que a proposta gerou na rotina dos lares. O segredo, segundo ela, foi demonstrar aos moradores que itens como garrafas pet, latinhas, papelão, ferro, plástico duro e óleo usado têm valor monetário.
"Algumas famílias viram os nossos 'the bests' da limpeza. Sempre voltam para casa com alguma coisa que trouxeram de uma festa, de um encontro. Vira uma prática diária. A Fabi (moradora), em toda festa que ela vai, ela não joga a latinha fora. Ela me liga e diz: 'Jaque, estou com um monte de latinhas, o que eu faço?'. A gente fica nessa loucura", diz.
Parte da 'vigilância da limpeza' na comunidade também é direcionada às crianças do projeto. Orientados, ao andar pelas ruas da região, os alunos, ao se depararem com lixo reciclável, direcionam cada material para o destino apropriado. O sentimento de patrulha sobre o comportamento dos adultos acaba virando uma diversão para a turma da criançada.
"A gente gosta de ficar andando por aí para juntar. Qualquer coisinha que a gente ache, a gente vai lá, pega, e leva para a coleta", contaram eles à reportagem. Perguntados sobre quais são os itens mais encontrados pelas ruas, não titubearam: 'garrafas e latinhas', pontuaram.
Fabiana Nascimento, de 51 anos, é uma das moradoras entusiastas do projeto. Altamente identificada com a comunidade, ela mantém uma barraquinha de cachorro quente, que garante ser o mais saboroso da região. Sobre a relação com o lixo, ela diz que o EcoMoral foi preponderante para a mudança de comportamento. "Eu jogava óleo usado na pia e depois tive a informação que causa um impacto muito grande", disse.
O reflexo na economia doméstica também é apontado por 'Fabi' como um aspecto relevante. "Não gasto mais dinheiro para comprar sabão em pó, sabonete, sabão pastoso, esponja, palha de aço. Isso já é uma grande ajuda". Entretanto, se atualmente as regras da casa são bem estabelecidas, ela garante que nem sempre foi assim.
"No começo, o meu marido implicava muito, pois dizia que eu estava acumulando lixo. Depois que ele viu que começou a dar resultado nas compras, aí ele aceitou. Até ele agora faz. Se ele passa na rua e vê uma pet ou uma latinha, ele traz", completa Fabi.
Sendo assim, a força do bom exemplo pode ser considerada peça-chave para que o projeto ganhe ainda mais atenção da população. "Quando viram que recebi meu primeiro kit, os meus vizinhos começaram a juntar também", observou Fabi.
"É sobre transformar o que seria jogado na caçamba em dinheiro, em grana. O lixo não é propriamente dito um lixo. É um material que você pode vender e construir esse entendimento para evitar o descarte inadequado, que é tão prejudicial ao mundo, à nossa favela e à nossa saúde" -- Jaque Favela