Resultado de trocas e articulações com mais de mil organizações, a carta de reivindicações da Cúpula dos Povos é entregue à presidência da COP30 neste domingo, 16. Com 15 propostas principais, após dois anos de construção coletivas, estão entre os destaques do documento o "enfrentamento a falsas soluções do mercado" e "transição justa, soberana e popular". A expectativa é que, agora, André Corrêa do Lago ecoe essas vozes dentro das salas de negociação a portas fechadas na última semana da Zona Azul.
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Marcaram presença André Correa do Lago, presidente da COP30; Ana Toni, CEO da COP30; Marina Silva, ministra do Meio Ambiente; Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas; e Guilherme Boulos, agora Secretaria Geral da Presidência da República (SGPR).
O documento foi lido por múltiplas vozes e conta com quatro páginas. O texto é alinhado ao discurso histórico de movimentos de esquerda, citando o "avançado da extrema direita, do fascismo e das guerras ao redor do mundo" como o que "exacerba a crise climática e a explosão da natureza e dos povos".
O feminismo também é colocado como parte central da carta: "Não há vida sem natureza. Não há vida sem a ética e o trabalho de cuidados. Por isso, o feminismo é parte central do nosso projeto político. Colocamos o trabalho de reprodução da vida no centro, é isso que nos diferencia radicalmente dos que querem preservar a lógica e a dinâmica de um sistema econômico que prioriza o lucro e a acumulação privada de riquezas".
A partir disso, primeiro são feitas 7 afirmações iniciais, onde o capitalismo é apontado como a causa principal da crise climática, que é ressaltado que as comunidades periféricas são as mais afetadas pelos eventos extremos e dito que são contra qualquer falsa solução. Depois são feitas 15 propostas (leia abaixo na integra).
Mais sobre a Cúpula dos Povos
A entrega da carta acontece um dia após as ruas de Belém serem tomadas pela Marcha Global pelo Clima, também promovido pela Cúpula dos Povos, que reuniu cerca de 70 mil pessoas, segundo últimas atualizações da organização obtidas pelo Terra. Inicialmente a carta seria entregue ao fim do ato, mas foi feita formalmente neste domingo.
O evento começou por volta de 9 horas com público reunido balançando bandeiras de movimentos, entoando gritos e cânticos. O clima era de resistência e união, com pessoas de múltiplas frentes sociais e nacionalidades emocionadas por estarem em conjunto no momento simbólico.
A Cúpula dos Povos é uma das agendas paralelas da COP30 que teve início na última quarta-feira, 12, e tem seu encerramento neste domingo. Foram dias de articulações com mais de 65 países e 1100 organizações e movimentos que levaram à escrita da carta entregue neste domingo. Por mais que esteja tendo fim o grande encontro que ficou sediado na UFPA, representantes da Cúpula também se farão presente dentro dos espaços oficiais da COP30 na última semana da conferência-- que tem fim na sexta-feira, dia 21.
15 propostas da Cúpula dos Povos na integra:
- O enfrentamento às falsas soluções de mercado. O ar, as florestas, as águas, as terras, os minérios e as fontes de energia não podem permanecer como propriedade privada nem serem apropriados, porque são bens comuns dos povos.
- Cobramos que haja participação e protagonismo dos povos na construção de soluções climáticas, reconhecendo os saberes ancestrais. A multidiversidade de culturas e de cosmovisões, carrega sabedoria e conhecimentos ancestrais que os Estados devem reconhecer como referências para soluções às múltiplas crises que assolam a humanidade e a Mãe Natureza.
- Exigimos a demarcação e proteção das terras e territórios indígenas e de outros povos e comunidades locais, uma vez que são quem garantem a floresta viva. Exigimos dos governos o desmatamento zero, o fim das queimadas criminosas, e políticas de Estado para restauração ecológica e recuperação de áreas degradadas e atingidas pela crise climática.
- Reivindicamos a concretização da reforma agrária popular e o fomento à agroecologia, para garantia da soberania alimentar e combate à concentração fundiária. Os povos produzem alimentos saudáveis, a fim de eliminar a fome no mundo, com base na cooperação e acesso a técnicas e tecnologias de controle popular. Esse é um exemplo de verdadeira solução para combater a crise climática.
- Demandamos o combate ao racismo ambiental e a construção de cidades justas e periferias vivas através da implementação de políticas e soluções ambientais. Os programas de moradia, saneamento, acesso e uso da água, tratamento de resíduos sólidos, arborização, e acesso à terra e à regularização fundiária, devem considerar a integração com a natureza. Queremos o investimento em políticas de transporte público, coletivo e de qualidade, com tarifas zero. Essas são alternativas reais para o enfrentamento da crise climática nos territórios periféricos no mundo todo, que devem ser implementadas com o devido financiamento para adaptação climática. Defendemos a consulta direta, a participação e gestão popular das políticas climáticas nas cidades, para o enfrentamento às corporações do setor imobiliário que têm avançado na mercantilização da vida urbana. A cidade da transição climática e energética deverá ser uma cidade sem segregação e que abrace a diversidade. Por fim, condicionar o financiamento climático a protocolos que visem a permanência habitacional e, em última instância, a indenização justa para pessoas e comunidades com garantia de terra e moradia, tanto no campo quanto nas cidades.
- Exigimos o fim das guerras e a desmilitarização. Que todos os recursos financeiros destinados às guerras e à indústria bélica sejam revertidos para a transformação desse mundo. Que as despesas militares sejam direcionadas à reparação e recuperação de regiões atingidas por desastres climáticos. Que sejam tomadas todas as medidas necessárias para impedir e pressionar Israel, responsabilizando-o pelo genocídio cometido contra o povo palestino.
- Exigimos a justa e plena reparação das perdas e danos impostos aos povos pelos projetos de investimento destrutivos, pelas barragens, mineração, extração de combustíveis fósseis e desastres climáticos. Também exigimos que sejam julgados e punidos os culpados pelos crimes econômicos e socioambientais que afetam milhões de comunidades e famílias em todo o mundo.
- Os trabalhos de reprodução da vida devem ser visibilizados, valorizados, compreendidos como o que são trabalho - e compartilhados no conjunto da sociedade e com o Estado.
- Esses são essenciais para a continuidade da vida humana e não humana no planeta. Isso também garante autonomia das mulheres, que não podem ser responsabilizadas individualmente pelo cuidado, mas devem ter suas contribuições consideradas: nosso trabalho sustenta a economia. Queremos um mundo com justiça feminista, autonomia e participação das mulheres.
- Demandamos uma transição justa, soberana e popular, que garanta os direitos de todos os trabalhadores e trabalhadoras, bem como o direito a condições de trabalho dignas, liberdade sindical, negociação coletiva e proteção social. Consideramos a energia como um bem comum e defendemos a superação da pobreza e da dependência energética. Tanto o modelo energético, quanto a própria transição, não podem violar a soberania de nenhum país do mundo.
- Exigimos o fim da exploração de combustíveis fósseis e apelamos aos governos para que desenvolvam mecanismos para garantir a não proliferação de combustíveis fósseis, visando uma transição energética justa, popular e inclusiva com soberania, proteção e reparação aos territórios. Em particular na Amazônia e demais regiões sensíveis e essenciais para a vida no planeta.
- Lutamos pelo financiamento público e taxação das corporações e dos mais ricos. Os custos da degradação ambiental e das perdas impostas às populações devem ser pagos pelos setores que mais se beneficiam desse modelo. Isso inclui fundos financeiros, bancos e corporações do agronegócio, do hidronegócio, aquicultura e pesca industrial, da energia e da mineração. Esses atores também devem arcar com os investimentos necessários para uma transição justa e voltada às necessidades dos povos.
- Exigimos que o financiamento climático internacional não passe por instituições que aprofundam a desigualdade entre Norte e Sul, como o FMI e o Banco Mundial. Ele deve ser estruturado de forma justa, transparente e democrática. Não são os povos e países do Sul global que devem continuar pagando dívidas às potências dominantes. São esses países e suas corporações que precisam começar a saldar a dívida socioambiental acumulada por séculos de práticas imperialistas, colonialistas e racistas, pela apropriação de bens comuns e pela violência imposto a milhões de pessoas mortas e escravizadas.
- Denunciamos a contínua criminalização dos movimentos, a perseguição, o assassinato e desaparecimento de nossas lideranças que lutam em defesa de seus territórios, bem como aos presos políticos e presos palestinos que lutam por libertação nacional. Reivindicamos a ampliação da proteção de defensores e defensoras de direitos humanos e socioambientais na agenda climática global, no marco do Acordo de Escazú e outras normativas regionais. Quando um defensor protege o território e a natureza, ele não protege apenas um indivíduo, mas todo um povo e beneficia toda a comunidade global.
- Reivindicamos o fortalecimento de instrumentos internacionais que defendam os direitos dos povos, seus direitos consuetudinários e a integridade dos ecossistemas. Precisamos de um instrumento internacional juridicamente vinculante em matéria de direitos humanos e empresas transnacionais, que seja construído desde a realidade concreta das lutas das comunidades atingidas pelas violações cometidas, exigindo direitos para os povos e regras para as empresas. Afirmamos ainda que a Declaração dos Direitos Campesinos e de Outras Pessoas que Trabalham nas Áreas Rurais (UNDROP) deve ser um dos pilares da governança climática. A plena implementação dos direitos camponeses devolve o povo aos territórios, contribui diretamente para a sua alimentação, para o cuidado do solo e o esfriamento do planeta. Por fim, consideramos que é tempo de unificar nossas forças e enfrentar o inimigo comum. Se a organização é forte, a luta é forte. Por esta razão, a nossa tarefa política principal é o trabalho de organização dos povos em todos os países e continentes. Vamos enraizar nosso internacionalismo em cada território e fazer de cada território uma trincheira da luta internacional. É tempo de avançar de modo mais organizado, independente e unificado, para aumentar nossa consciência, força e combatividade. Este é o caminho para resistir e vencer. “Povos do mundo: Uni-vos”
*A repórter viajou a Belém com apoio do ClimaInfo