De casa à capital pelo rio: como embarcações garantem o ir e vir de milhares no Pará

Em 2024, o sistema intermunicipal de transporte hidroviário do Pará registrou mais de 550 mil passageiros

16 nov 2025 - 05h00
(atualizado em 17/11/2025 às 13h50)
Resumo
O transporte hidroviário é essencial para a mobilidade, economia e acesso a serviços na região de Belém, Pará, demonstrando seu papel na rotina dos moradores, no turismo e como alternativa sustentável para o desenvolvimento logístico e a redução de emissões no Brasil.
De casa à capital pelo rio: como embarcações garantem o ir e vir de milhares no Pará
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Na Amazônia, a água também é estrada, caminho, rota de sobrevivência. Os rios que recortam o Pará funcionam como grandes vias, por onde circulam estudantes, trabalhadores, comerciantes, moradores que buscam por atendimento médico e famílias inteiras que dependem das embarcações para chegar aonde precisam. Em Belém, a lógica urbana se dobra à força da natureza. Aqui, o barco cumpre o papel que o metrô exerce em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

Segundo a Agência de Regulação e Controle dos Serviços Públicos de Transporte (Artran), somente em 2024 o sistema intermunicipal de transporte hidroviário do Pará registrou 553.823 passageiros. São 52 ligações regulares, operadas por 80 empresas, com 268 embarcações e 43 terminais espalhados pelo estado. Entre as rotas mais movimentadas estão Belém–Barcarena, Icoaraci–Camará (Salvaterra), Belém–Breves, Belém–Soure e Ponta de Pedras–Belém.

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Terminal Hidroviário Ruy Barata, localizado na Praça Princesa Isabel
Terminal Hidroviário Ruy Barata, localizado na Praça Princesa Isabel
Foto: Beatriz Araujo/Terra

A rotina que navega cedo

No Terminal Hidroviário de Belém Luiz Rebelo Neto, a vendedora de passagens Vanda Barbosa, de 22 anos, de Ponta de Pedras, vive uma rotina quase coreografada pela maré. A falta de oportunidades de trabalho na ilha a fez buscar emprego na capital, mas sem abandonar o rio como caminho diário.

Vanda Barbosa, 22 anos, de Ponta de Pedras, vive uma rotina quase coreografada pela maré
Foto: Isabella Lima/Terra

“Eu acordo 4 horas da manhã todos os dias para me arrumar, para estar no ponto às 5 horas e pegar a lancha de 5h30”, contou. O trajeto dura cerca de duas horas. No início, o corpo reclamava. “No começo foi cansativo. Mas agora não, não sinto mais. E a lancha é muito boa, tem até Wi-Fi.”

A jornada de Vanda não termina com o fim do expediente. “Trabalho das 8h até 14h, chego na ilha às 16h e em casa às 17h. Quando chego na ilha, ainda tem mais uma hora de carro até em casa, que meu pai me busca e me leva sempre. Depois, das 18h às 21h, eu estudo criminologia à distância.”

Mesmo diante da rotina exaustiva, ela mantém os sonhos que a fazem escolher por esse caminho. “Com a faculdade posso atuar em ação social, no Ministério Público ou em trabalhos mais relacionados com perícia.”

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Trabalho, mercadorias e movimento

No mesmo terminal, Jorge Gomes da Silva, de 65 anos, trabalha há três décadas com agenciamento de passagens. Ele é testemunha diária do fluxo de pessoas e mercadorias que atravessam a Baía do Guajará rumo ao Marajó e às ilhas.

“Quem viaja daqui para o Marajó enfrenta cerca de duas a três horas de viagem. Há uma população flutuante constante: trabalhadores, estudantes e comerciantes que transportam farinha, açaí e outros produtos para Belém e retornam diariamente”, explicou.

Jorge Gomes da Silva, de 65 anos, trabalha há três décadas com agenciamento de passagens
Foto: Isabella Lima/Terra

Jorge também descreve a estrutura da frota atual. “As lanchas levam de 200 a 250 passageiros, todas regularizadas pela capitania, com Wi-Fi e sistemas de segurança". Sobre os valores, afirma que as "passagens são iguais para moradores e turistas, exceto quando alguém agenda uma viagem exclusiva".

Transporte que salva e trata

No Terminal Hidroviário da Tamandaré, inaugurado recentemente para substituir o antigo porto do Ver-o-Peso nas viagens para Barcarena e ilhas, estava Maria Regina Diniz Serrão, moradora de Barcarena. Ela viaja mensalmente a Belém para realizar exames e acompanhar o tratamento da diabetes.

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“Eu pego o barco todo mês para vir a Belém. Eles saem de hora em hora, e a primeira viagem é às 6h da manhã. Cada trajeto dura entre 45 minutos e uma hora, dependendo da maré”, contou. Segundo ela, as embarcações transportam cerca de 62 passageiros por viagem e a passagem custa R$ 18.

Maria Regina Diniz Serrão é moradora de Barcarena, município no entorno de Belém
Foto: Isabella Lima/Terra

Sobre o novo terminal, Maria Regina reconhece as melhorias, mas aponta um novo desafio logístico. “O terminal novo melhorou muito a segurança. Lá no antigo era madeira e às vezes, com a maresia, caía. Mas agora é um pouco mais distante do Ver-o-Peso. Antes o barco parava lá e era só descer e pegar ônibus. Agora, se quiser ir para lá, tem que pegar moto ou Uber.”

Ainda assim, ela resume em uma frase o sentimento de quem depende do rio. “Eu acho muito bom esse transporte porque sem ele não tem como a gente vir pra Belém. Nos ajuda muito. Fora que a passagem não é cara.”

Tecnologia para navegar melhor

Da Ilha do Marajó surge também uma tentativa de transformar o transporte hidroviário com tecnologia. Samuel Novaes, de 29 anos, desenvolvedor de sistemas e morador de São Sebastião da Boa Vista, criou o aplicativo zarpa.app após vivenciar por anos as dificuldades para viajar pela região.

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“Quando eu decidi vir do Marajó para Belém [onde estuda], eu percebi que as pessoas também precisavam viajar frequentemente e sempre que eu me deparava nessa necessidade de viajar, eu precisava me deslocar até o terminal hidroviário para tentar comprar minha passagem. Às vezes era uma fila enorme e era um transtorno.”

Ele relata que as informações disponíveis eram insuficientes e que de Belém à cidade que mora são seis horas de viagem. “Essas informações às vezes até tinham na internet, mas tudo de forma muito defasada, muito antiga". Foi da frustração de alguém que depende dos barcos no seu dia a dia nasceu a solução. “Ele se chama zarpa.app. Lá você consegue ver as principais informações de horários de barco na região Norte”. 

Samuel criou um aplicativo para que as pessoas consigam ter mais facilidade para navegar
Foto: Isabella Lima/Terra

O aplicativo permite organizar a viagem com mais antecedência e segurança. “Você consegue comprar com antecedência e se organizar de forma melhor. Quando você compra a passagem pelo aplicativo, ele te notifica. Ele te dá vários alertas. O lugar onde eu moro é composto por 16 municípios. A gente precisa dos rios para chegar, para escoar produtos, para visitar um amigo ou até mesmo resolver algum problema", destacou. 

Ele descreve a diversidade das embarcações amazônicas, citando desde ferry boats até catamarãs e lanchas de alta velocidade, utilizados conforme a distância e a necessidade de cada trajeto. E antecipa o próximo passo da plataforma. “Provavelmente a gente vai ser o Uber dos barcos daqui. A possibilidade de expansão do aplicativo também não é só Brasil. O planeta é água, apesar de se chamar terra", disse ele. 

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Para ele, o projeto tem uma dimensão humana que é o que o moveu na criação. “Não é só um aplicativo. É o ir e vir das pessoas. É uma certa qualidade de vida também. Sou apaixonado pela Amazônia e tinha a necessidade de ajudar as pessoas, de mudar a forma como as coisas são hoje. Acho que isso que ajudou o aplicativo a chegar nesse momento. Essa visão de querer ajudar as pessoas", finalizou. 

Jovem quer promover tecnologia e facilidade para quem depende do transporte hidroviário
Foto: Isabella Lima/Terra

Rios que conectam Belém

Além dos terminais já citados pela reportagem, a equipe percorreu outros dois pontos importantes da navegação cotidiana e turística de Belém. Um deles é o Terminal Hidroviário Ruy Barata, na Praça Princesa Isabel, de onde partem embarcações rumo à Ilha do Combu.

O Combu é um dos principais atrativos turísticos da região, mas também um território marcado por pressões socioambientais, intensificadas pelo avanço acelerado de restaurantes e pousadas às margens dos igarapés. Logo na chegada ao terminal, panfleteiros abordam os visitantes oferecendo opções de restaurantes.

Terminal Hidroviário Ruy Barata, localizado na Praça Princesa Isabel
Foto: Beatriz Araujo/Terra

A disputa pelos passageiros começa antes mesmo do embarque, porque o turista precisa informar no momento da subida à lancha o ponto exato onde pretende desembarcar. A concorrência entre estabelecimentos tem levado a propostas cada vez mais extravagantes: shows, estruturas semelhantes a resorts e até piscinas construídas sobre palafitas — tudo às margens de um rio que é via, paisagem e sustento da comunidade local.

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Outro ponto visitado pela reportagem foi o recém-inaugurado Terminal Turístico de Icoaraci, entregue há cerca de um mês pelo governo estadual como parte das obras prévias à COP30. O espaço amplia o fluxo de viagens para áreas próximas, incluindo trechos do Marajó. Ali parte o tradicional “geladão”, transporte fluvial equivalente ao ônibus urbano, com passagem a R$ 4,60.

Nos primeiros dias da conferência, também foi no terminal que ficaram atracados dois barcos-hospitais da Associação e Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus. Realizando atendimentos médicos em diversas especialidades, as embarcações chegaram a formar filas ainda de madrugada.

Terminal Turístico de Icoaraci,
Foto: Beatriz Araujo/Terra

Hidrovias e futuro sustentável

Especialista no setor, Décio Amaral, CEO da Hidrovias do Brasil, afirma que o potencial logístico dos rios brasileiros é subaproveitado e que o transporte hidroviário representa uma das alternativas mais eficientes para reduzir emissões e custos no País. Segundo ele, “o transporte hidroviário é mais sustentável e é capaz de entregar menos custos em comparação com o transporte terrestre”, demonstrando emissões 77% menores de CO₂ e que o modal rodoviário e 36% menores que o ferroviário.

Para Amaral, o Brasil possui uma vantagem natural que ainda não é plenamente explorada. Ele destaca que apenas 48% das hidrovias são economicamente navegáveis, enquanto outras nações, como os Estados Unidos, utilizam seu potencial de forma muito mais ampla. “Precisamos potencializar esse modal”, pontua ele, mencionando os investimentos federais previstos para 2026 e a criação da Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação.

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Terminal Hidroviário de Belém
Foto: Beatriz Araujo/Terra

Ele reconhece entraves, especialmente regulatórios e operacionais: “Encontramos desafios como a dragagem de manutenção, que é o ponto mais crítico para a perenidade da navegação. Não é obra nova: é conservação.” Para o setor privado, a previsibilidade é fundamental: “A parceria público-privada é a receita para o desenvolvimento da infraestrutura brasileira.”

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Amaral também comenta a centralidade dos rios na vida dos paraenses. Segundo ele, “os rios são estradas naturais que conectam comunidades”, e o transporte fluvial deveria ser tratado com a mesma importância das rodovias. Ele reforça que as concessões hidroviárias, ainda inéditas no Brasil, tendem a beneficiar toda a população, e que “manter o rio navegável será bom não só para as empresas, mas para toda a sociedade paraense”.

No aspecto econômico, o especialista lembra que o corredor Miritituba–Barcarena já é um dos principais vetores de exportação do agronegócio. Sobre a crise climática, Amaral explica que o transporte fluvial é parte essencial da transição para uma logística de baixo carbono. Ele destaca que um comboio de 35 barcaças, capaz de transportar 70 mil toneladas, retira 1.750 caminhões das rodovias ou substitui a carga de seis trens. Para ele, navios navegando 365 dias por ano, com dragagens contínuas e gestão integrada, representam não apenas eficiência, mas uma resposta urgente aos desafios impostos pelo clima.

*A repórter Isabella Lima viajou a convite da Motiva, idealizadora da Coalizão pela Descarbonização dos Transportes.

*A repórter Beatriz Araujo viajou a Belém com apoio do ClimaInfo.

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Fonte: Portal Terra
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