Fila de madrugada, balanço do mar e pedido do papa: como é o barco-hospital na COP30
Terra embarcou nos navios temporárias que estão no novo terminal de Icoaraci, em Belém, e mostra detalhes
Por volta das 22h começa a se formar uma fila em frente ao novo terminal hidroviário no distrito de Icoaraci, em Belém. O motivo? Garantir uma ficha para ser atendido nos barcos-hospitais franciscanos atracados por lá desde a última sexta-feira, 7. Nos navios, o balanço causado pela maré agitada faz os pacientes darem risada e as referências cristãs são muitas. Afinal, o barco principal se chama 'papa Francisco' por um motivo.
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Foi o pontífice argentino, em encontro com o frei brasileiro Francisco Belotti, que falou para que os franciscanos já experientes em redes de cuidados de saúde atuassem na Amazônia. O pedido foi feito em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, e se concretizou em 2017. Agora, o barco-hospital 'papa Francisco' e o seu companheiro recente 'São João XXIII', que estão atracados em Belém, atuam em comunidades do Pará e Amazonas com atendimentos feitos por médicos especialistas voluntários.
O frei Francisco Belotti é o fundador e presidente da Associação e Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus, e sabia que marcaria presença na 30ª Conferência das Partes da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30) com a organização. Resolveu, então, unir a conferência à missão e também disponibilizar atendimento para a população durante parte do período. Oficialmente, eles ficaram em Icoaraci até quarta-feira, dia 12. Depois partem para outra expedição no Amazonas.
E por aqui os barcos estão fazendo sucesso. Há atendimentos de clínico geral, pediatra, cardiologista, ginecologista, dentista, atendimentos para cirurgia e oftalmologista --sendo esse último o com mais procura, conforme apurou a reportagem. Sob as águas também é possível fazer exames como ultrassonografias, mamografia e testes rápidos como os de sangue.
O intuito é que as pessoas tenham atendimento completo e, se possível, ainda recebam os medicamentos necessários para os possíveis tratamentos em questão.
O projeto faz sucesso, mas tem uma capacidade de atendimento. São disponibilizadas apenas cerca de 30 fichas por especialidade diariamente --o que motiva as filas durante a madrugada. Assim, quem acaba chegando "tarde demais" acaba não conseguindo o acesso.
O esquema é o seguinte: os pacientes começam a ser recebidos às 6h30, quando passam por uma triagem, recebem sua ficha e são direcionados aos barcos para os atendimentos. São dois barcos que ficam interligados um ao outro no cais e dividem os atendimentos. As passagens entre eles balançam conforme a maré, e viram motivo de graça de quem está pelo barco. "Parece que estamos numa rede", brincou uma paciente.
O espaço é bem organizado, com entrada controlada e regras respeitadas. Para entrar é preciso passar primeiro pelo barco 'São João XXIII', que conta com uma parte dos atendimentos no térreo e ainda tem outros dois andares. Por lá há uma imagem do papa que dá nome à embarcação 'abençoando' a recepção, de frente a um pequeno santíssimo com imagem de Cristo na cruz abraçado por São Francisco. Aos arredores das embarcações há ainda o que chamam de "ambulanchas" de emergências.
A vista para as águas, que ganha brilho com o reflexo do pôr do sol, também vira atração tanto para quem está sendo atendido quanto para os profissionais que atuam no barco. Muitos não resistem a selfies com a beleza de um horizonte na Amazônia.
As atividades costumam encerrar por volta de 19h, quando todos os pacientes que receberam fichas no início do dia são atendidos. Mas há quem passe a noite no barco, como nos casos de cirurgias e procedimentos que precisam de internação. Se acontecer do barco ter que partir para outra expedição e a pessoa ainda não tiver tido alta, ela é encaminhada a algum outro hospital da região.
Na ação em Belém, conforme apurado pelo Terra, atuam 21 médicos, somando os profissionais dos dois barcos, e mais uma tripulação com cerca de 110 pessoas -- incluindo técnicos de enfermagem, funcionários de serviços gerais, farmacêuticos, cozinheiros e afins. Já os atendimentos têm girado em torno de 300 por dia.
O pedido do papa Francisco prosperou, e ele chegou a saber da homenagem brasileira. "Ele sempre foi muito receptivo, muito aberto, e muito interessado por tudo que acontecia aqui", contra o frei, que se encontrou com ele ainda em outras três vezes. "Nós entendemos que hoje ele é uma presença viva aqui, porque é um hospital que vai até as pessoas"
'Muita gente precisando'
Em entrevista exclusiva, frei Francisco Belotti comenta que, para ele, a multidão que os barcos-hospitais atraíram nos últimos dias mostra a necessidade de embarcações do tipo em cidades como Belém, onde há um contexto especifico de distanciamentos dos serviços decido à geografia da região.
"São muitas pessoas esperando há muito tempo [para serem atendidas em certas especialidades]. Os serviços existem, mas é muita gente precisando", diz o frei, com base em suas experiências pelas expedições.
Segundo o governo do Pará, a ação dos barcos em Icoaraci é uma iniciativa da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (Saes), do Ministério da Saúde, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa) e a Secretaria Municipal de Saúde (Sesma), a fim de ampliar a cobertura de serviços de saúde durante a COP.
Como explica, o projeto conseguiu saiu do papel a partir de uma parceria com o Ministério Público do Trabalho de Campinas, São Paulo, que converteu o valor de uma multa para a causa e assim surgiu o barco 'papa Francisco'. Navegando desde 2017, a embarcação chegou até a servir como ponto de atendimento emergencial durante a pandemia da Covid-19. De lá pra cá, no total, são mais de um milhão de atendimentos feitos.
Para o religioso, falar do barco-hospital é também falar de sustentabilidade --pois a embarcação conta com tratamento de esgoto, tratamento de água e tem um cuidado especial voltado aos resíduos. "É uma resposta muito importante nesse momento do meio ambiente. Mostrar que é possível. A natureza está dizendo que desse jeito [atual, no geral] não dá. Precisamos respeitar esse modelo. E os barcos-hospitais fazem isso em sua essência", comenta.
“A nossa missão como franciscanos é essa, promover a vida em todos os seus sentidos. E São Francisco é patrono da ecologia. Então tem tudo a ver conosco [a COP30]. E a hora mais difícil da vida é a hora da dor. Então nessa hora o apito do barco se faz esperança”, acredita o Frei.
Os barcos-hospitais se mantêm através de convênios com o governo do Pará e com o governo estadual do Amazonas. O frei adianta que estão pleiteando convênios com o Ministério da Saúde, do Governo Federal, para qualificar o barco-hospital como unidade de internação hospitalar. A ideia é que isso seja oficializado ainda durante a COP30, com uma visita do Ministro da Saúde no local.
*A repórter Beatriz Araujo viajou a Belém com apoio do ClimaInfo.
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