'Falar com os mortos é uma das bases do teatro', diz Milo Rau ao estrear peça-manifesto em Avignon

O renomado diretor suíço Milo Rau conversou com a RFI antes da estreia de seu novo espetáculo, La Lettre (A Carta), que será apresentado nesta terça-feira (8), no Festival de Avignon. A obra, concebida como uma peça-manifesto, mergulha nas histórias pessoais de jovens artistas para refletir sobre os eventos que transformam vidas — como conflitos familiares, questões políticas e experiências de amor e perda. A estreia marca um dos momentos mais aguardados desta 79ª edição do festival francês.

8 jul 2025 - 13h12
(atualizado às 14h00)

O renomado diretor suíço Milo Rau conversou com a RFI antes da estreia de seu novo espetáculo, La Lettre (A Carta), que será apresentado nesta terça-feira (8), no Festival de Avignon. A obra, concebida como uma peça-manifesto, mergulha nas histórias pessoais de jovens artistas para refletir sobre os eventos que transformam vidas — como conflitos familiares, questões políticas e experiências de amor e perda. A estreia marca um dos momentos mais aguardados desta 79ª edição do festival francês. 

O diretor suíço Milo Rau conversou com a RFI antes da estreia de seu novo espetáculo, "La Lettre" ("A Carta"), no Festival de Avignon, nesta terça-feira, 8 de julho de 2025.
O diretor suíço Milo Rau conversou com a RFI antes da estreia de seu novo espetáculo, "La Lettre" ("A Carta"), no Festival de Avignon, nesta terça-feira, 8 de julho de 2025.
Foto: © Cyrill Etienne / RFI / RFI

Márcia Bechara, enviada especial a Avignon

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Depois de encenar tragédias de escala épica e internacional — como Antígona na Amazônia, filmada com comunidades indígenas no Brasil, ou Orestes em Mossul, montada em pleno território iraquiano devastado pela guerra — o diretor suíço Milo Rau surpreende ao escolher o caminho oposto: o da contenção, da escuta, da intimidade.

Em La Lettre (A Carta)*, que estreia nesta terça-feira (8) no Festival de Avignon, Rau abandona os grandes dispositivos geopolíticos para mergulhar em histórias pessoais, quase sussurradas. No palco, apenas dois intérpretes. Mas o que se ouve são vozes ancestrais — vozes de mães, ou melhor, de avós — figuras muitas vezes esquecidas, apagadas da história oficial. Seria essa uma nova forma de resgate? Uma tentativa de dar palco às memórias periféricas, como Rau já fez em The Congo Tribunal, quando transformou o teatro em um tribunal político no coração da África — mas agora em outra escala, mais íntima, mais silenciosa?

Na véspera da estreia, Milo Rau conversou com exclusividade com a RFI. Em tom direto e reflexivo, falou sobre o poder do teatro como espaço de reparação, sobre a violência que nos atravessa e sobre o gesto radical de escutar os mortos. "Falar com os mortos é uma das bases do teatro", afirma. "É isso que fazemos quando damos corpo a vozes que já se foram." A seguir, a entrevista completa.

RFI: Parece que hoje há uma tendência no teatro de partir do íntimo para falar do coletivo. Você acha que isso reflete o espírito do nosso tempo?

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Milo Rau: Talvez sim. De qualquer forma, no meu trabalho sempre busco conectar o pessoal com o político. O que me interessa é contar uma grande história a partir das pequenas histórias dos atores e atrizes. Em La Lettre, acompanhamos Olga e Arne, e por meio das histórias deles, tocamos em temas como a morte, o amor, a história da França, o futuro, o passado, o respeito… e até o próprio teatro.

O Sartre dizia que cada um de nós é o primeiro e o último ser humano — cada pessoa carrega o destino da humanidade.

Acho essa ideia muito bonita. Nessa peça, somos levados a uma certa intimidade: são apenas dois atores, muito próximos do público. Mas também há uma coletividade presente, com quem dialogamos. Desde o início, eu quis unir essas duas dimensões.

RFI: A avó de Arne sonhava em atuar em A Gaivota, e Olga se apropria da figura de Joana d'Arc. La Lettre também é um manifesto sobre o direito de se tornar artista?

Milo Rau: Sim, acho que muitas vezes fazemos as coisas por alguém. Arne se torna ator por causa da avó. Olga talvez se torne atriz por causa do pai, da mãe… E como em A Gaivota, de Tchekhov, nunca recebemos exatamente o reconhecimento que esperamos. Não existem pais perfeitos que dizem: "Que bom, você virou artista." Muitas vezes, as gerações não conseguem se comunicar. Esses jovens atores ainda são filhos ou netos de alguém, e achei importante falar sobre isso.

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Por que começamos a fazer teatro? Por que queremos nos comunicar com o público? São perguntas pequenas, mas que crescem e se tornam universais. Acho que todos nós já nos fizemos essas perguntas.

RFI: Você fala das mães, das avós, de figuras que sofreram apagamento, foram invisibilizadas em determinado momento. Existe também uma ideia de reparação nessa peça?

Milo Rau: Sim, contar uma história é sempre uma forma de reparação. É também uma maneira de se conhecer melhor, de entender o que nos aconteceu, por que às vezes não conseguimos seguir em frente. Às vezes, o objetivo nem é criar uma obra de arte, mas sim construir uma amizade, compreender a própria intimidade, a própria história — e talvez até o nosso tempo.

Olga fala da obsessão dela por Joana d'Arc. Ela é uma mulher negra, e nunca vai interpretar Joana d'Arc num filme, porque isso "não faz sentido" dentro da lógica atual, talvez dentro da lógica da França. Isso é algo muito revolucionário, mas também muito melancólico.

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E Joana d'Arc, afinal, era uma heroína ou uma criminosa de guerra? Ela decidiu que era preciso matar todos os ingleses… o que não é exatamente bom para os ingleses (risos). Então comecei a pensar nessas questões em relação à Olga. Por isso, no final da peça, ela se transforma numa miliciana sérvia que mata um soldado da ONU. É uma forma de questionar os papéis históricos e o lugar do artista.

RFI: Você costuma trabalhar com atores que têm histórias de vida específicas, ou mesmo com pessoas que não são profissionais. Isso faz parte do seu manifesto artístico, como vemos no seu trabalho em Gante, na Bélgica. O que te atraiu nas histórias de Arne e Olga? O que te convenceu a incluí-los no projeto "Peça Comum"?

Milo Rau: Com Arne, o que me interessou foi a ideia de "ressuscitar" a avó dele por meio da inteligência artificial. Falar com os mortos é, de certa forma, uma das bases do teatro. Como disse Heiner Müller: dialogar com os mortos — isso é teatro. Em muitas peças, falamos com fantasmas.

Achei isso extremamente interessante, especialmente um momento muito tocante em que a avó fala e Olga empresta seu corpo àquela voz. Juntas, elas se tornam uma só pessoa — e depois se separam novamente. Esses jogos com o corpo, com as vozes, com o passado, com o que desapareceu, com visões que se tornam realidade… tudo isso me fascina.

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A história da avó de Arne surgiu durante uma turnê em Nova York com Antígona na Amazônia. O avô e o pai de Arne estavam presentes, e ele contou que a bisavó havia ido para os Estados Unidos em 1949 e desaparecido. Ela deixou uma carta para a filha dizendo: "Estou indo embora, me perdoe. Não vou voltar. Seja feliz. Não me esqueça, eu não vou te esquecer." Isso me tocou profundamente e acabou se tornando um dos pontos de partida da peça.

No caso da Olga, eu sabia que ela era de Orléans e que já tinha falado sobre Joana d'Arc. Depois descobri que a avó dela morreu queimada viva no próprio apartamento, pois sofria de esquizofrenia. Vi aí uma ligação entre Olga, sua avó e Joana d'Arc. Também me interessa o fato de que, hoje, partidos de extrema-direita estão crescendo na Europa — e Joana d'Arc, curiosamente, virou um símbolo para esses grupos. Essas conexões me interessam muito.

RFI: Arne fala de um "ato de violência". Isso também te interessa?

Milo Rau: Sim, a violência é um tema central no meu teatro. É a violência que nos destrói, mas que também pode nos unir ou nos tirar de uma situação difícil. Achei muito forte quando Arne disse: "Ninguém se interessava por mim até que comecei a me machucar. E aí, de repente, houve silêncio." Isso diz muito. E eu pensei: isso é teatro.

* Criada dentro do projeto Peça Comum / Volksstück, A Carta, de Milo Rau, é apresentada no Festival de Avignon 2025 no palco do Théâtre Benoît-XII (dias 9 de julho às 20h e 10 de julho às 12h30) e em uma turnê itinerante por diversas cidades da região. 

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