Thomás Zicman de Barros, analista político
Na última sexta-feira (5), a Casa Branca publicou a nova Estratégia de Segurança Nacional, o documento que define os objetivos e prioridades globais dos Estados Unidos. A mídia francesa destacou sobretudo o tom corrosivo em relação à Europa, apresentada como um continente em crise, em perda de identidade, e a ser deixado à própria sorte. No Brasil, porém, o documento recebeu pouca atenção, embora coloque a América Latina como prioridade da diplomacia americana, quase como um espaço vital, um quintal sobre o qual os EUA reivindicariam soberania.
Trump sempre buscou se vender como um isolacionista em política externa. Proclama ser contrário à ideia de que os EUA devam atuar como polícia do mundo, critica intervenções americanas no exterior e afirma concentrar-se nos problemas internos do país. Ocorre que esse isolacionismo parece não valer para a América Latina, tratada não como um conjunto de países soberanos, mas como uma extensão da fronteira estratégica dos EUA, zona alargada de sua própria segurança interna.
A postura de Trump parte da premissa de que o mundo está dividido em esferas de influência das grandes potências. A Europa, marcada pela guerra na Ucrânia, é apresentada como condenada à decadência e, por isso, deixada para se virar sozinha. A administração americana sinaliza que não pretende mais se imiscuir no espaço pós-soviético, para não melindrar a Rússia. No máximo, promete dar algum apoio a governos de extrema direita, nada além disso. Também pretende reduzir o foco no Oriente Médio, palco de três décadas de esforços militares malsucedidos. Para os vizinhos latino-americanos, entretanto, a lógica é distinta.
A nova estratégia declara explicitamente um "Corolário Trump à Doutrina Monroe", ressuscitando o antigo lema "A América para os americanos". Mas permanece a pergunta que acompanha essa fórmula desde o século XIX: quais americanos? O lema sempre carregou uma ambiguidade e pode soar como defesa da soberania continental. Na prática, historicamente significou "a América - isto é, todas as Américas, do Alasca à Terra do Fogo - para os Estados Unidos", que se reservam o direito de ditar as regras aos demais povos da região.
América Latina
A estratégia de 2025 não deixa dúvidas quanto a essa leitura. O documento afirma sem rodeios que, como contrapartida ao recuo em outras partes do mundo, Washington negará a qualquer potência externa a possibilidade de influenciar, investir ou adquirir ativos estratégicos na região, reafirmando que a América Latina é área de "preeminência" americana. Embora não a mencione nominalmente, o alvo evidente é a China, já principal parceira comercial de muitos países do continente.
Esse enquadramento também ajuda a explicar o discurso belicoso contra o que chamam de "narco-terroristas" e, sobretudo, contra a Venezuela, cujo espaço aéreo Trump declarou fechado na semana passada. Pouco importa o que cada um pense sobre o governo venezuelano - Maduro perdeu inclusive a boa vontade do governo brasileiro após descumprir acordos costurados com apoio do Itamaraty, realizando eleições contestadas. Tampouco se pode ignorar que parte da oposição venezuelana flerta com práticas antidemocráticas. Nada, porém, justifica que uma potência externa se arrogue o direito de intervir militarmente, de olho nas vastas reservas petrolíferas venezuelanas. Qualquer intervenção desse tipo desestabilizaria a região, agravaria o sofrimento da população e criaria precedentes perigosos para todo o continente.
Há, sem dúvida, tensões entre o que afirma o documento e a prática da diplomacia americana. Trata-se das contradições entre, de um lado, a visão do chanceler Marco Rubio, político oriundo dos grupos latinos ultraconservadores da Flórida e defensor de uma linha dura na América Latina, e, de outro, os rompantes erráticos de Trump, que frequentemente atropela as diretrizes de sua própria equipe diante de líderes que admira. Como se viu nos últimos meses, Trump cultivou uma relação cordial com Lula. O documento publicado na sexta-feira, porém, não oferece perspectivas animadoras para a região. Ele tende a criar dificuldades justamente para países que, como o Brasil, historicamente prosperaram quando conseguiram escapar da tutela exclusiva de Washington e ampliar de forma soberana suas parcerias - seja com a União Europeia, com a China, ou por meio de cooperações Sul-Sul.
Diante das preocupantes repercussões da nova estratégia para a América Latina, causa estranhamento que a imprensa brasileira não tenha dado ao documento o mesmo destaque que ele recebeu na Europa — justamente quando, no caso latino-americano, o perigo é o oposto e potencialmente mais grave. Se os europeus temem ser deixados sozinhos, a América Latina tem razões para temer que os Estados Unidos simplesmente não a deixem em paz.