Um de meus interesses como cientista volta-se para a própria prática científica e o ambiente em que ela acontece. Procuro compreender como nós, cientistas, nos comportamos dentro desse sistema. Como escolhemos o que pesquisar, como citamos nossos colegas e de que modo enxergamos as relações entre pares dentro e fora de nossos campos de atuação.
É como ser, ao mesmo tempo, observador e observado. Nesse sentido, assumo explicitamente que a ciência é um produto cultural humano, e como tal encontra-se sujeita a valores, crenças e disputas.
Recentemente, chegou até mim, pelas redes sociais, um texto que exemplifica de modo preciso algumas das tensões na ciência. Trata-se de uma carta aberta da professora Anna Krylov, da University of Southern California, dirigida a um editor do grupo Nature.
Nela, Krylov anuncia que não mais colaborará com as revistas do grupo, acusando-as de abandonar a missão científica e submeter-se a uma "agenda ideológica de justiça social". Segundo ela, políticas de diversidade e inclusão teriam comprometido a objetividade e o rigor da ciência.
A carta ganhou repercussão, especialmente entre os que acreditam que a ciência deve ser um território neutro e desprovido de qualquer valor político.
Mas será que a neutralidade científica é mesmo possível, ou mesmo desejável? Já adianto aos meus leitores que não acredito nisso, pois a prática científica é marcada por agendas geopolíticas e de processos de exclusão
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A falsa oposição entre rigor e diversidade
A argumentação de Krylov parte da suposição de que rigor e diversidade são mutuamente excludentes. Para ela, a ciência deveria ser guiada apenas pela competência e pelo mérito individual, e qualquer consideração sobre gênero, raça ou origem institucional seria uma forma de "engenharia social".
Mas os que defendem essa visão ignoram é que a ciência nunca foi neutra e, ouso dizer, nunca o será. Mesmo antes de qualquer política de inclusão, como considerar a questão de gênero e origem geográfica ao convidar cientistas para atuarem como revisores de artigos científicos, o sistema científico, tal como opera hoje, não garantia diversidade de conhecimentos nem neutralidade metodológica. A crença em um espaço meritocrático e puramente racional é, na verdade, uma visão romântica e idealizada, que muitas vezes é usada para reforçar estruturas de exclusão e concentrar poder em determinados grupos historicamente privilegiados.
Nas redes sociais, especialmente no Twitter/X, os comentários sobre o texto de Krylov foram diversos, mas muitos pareciam convergir para uma mesma linha de argumentação: a de que "a qualidade da ciência depende da qualidade de quem avalia a ciência". Em alguns desses comentários, percebe-se uma crítica explícita às políticas de inclusão, sugerindo que certos grupos, possivelmente mulheres, pessoas de países periféricos ou membros de grupos sub-representados, seriam menos qualificados para exercer funções de avaliação científica.
Essa perspectiva carrega como pano de fundo o pressuposto de que esses grupos seriam, por natureza, de qualidade inferior. Além de equivocado, tal argumento revela como discursos de defesa da meritocracia científica servem para sustentar preconceitos estruturais que transcendem a própria ciência.
Lembrei-me imediatamente de uma situação em que eu estava reunido com cientistas de diferentes regiões do Brasil. Em certo momento, um deles expressou preocupação com um concurso para professor do magistério superior em seu departamento, dizendo estar apreensivo com a chamada "vaga podre", um termo que ele usou para se referir às vagas destinadas ao ingresso por cotas raciais. Não havia ainda candidatos, tampouco concurso aberto, mas o discurso já trazia implícita a ideia de que a vaga seria ocupada por alguém desqualificado(a).
Estudos têm demonstrado de forma consistente vieses de gênero, raça e geografia em diferentes campos científicos. Mulheres são menos citadas, pesquisadores do Sul Global têm menor probabilidade de publicar em revistas de alto impacto e autores não anglófonos enfrentam barreiras simbólicas e linguísticas. Portanto, se há uma ameaça ao rigor e à diversidade e pluralidade de saberes, ela não vem das políticas de diversidade, mas de um sistema que reproduz desigualdades disfarçadas de neutralidade e objetividade.
Assumir que convidar uma cientista para uma tarefa significa rebaixar os critérios de rigor é, em si, preconceito. Essa lógica parte da suposição velada de que mulheres cientistas teriam menos a oferecer do que homens cientistas e isso, além de falso, revela o quanto discursos de defesa do mérito carregam vieses profundamente enraizados. Do mesmo modo, presumir que uma revista científica, ao adotar políticas de diversidade, está renunciando à qualidade é uma leitura simplista, enviesada e, na melhor das hipóteses, equivocada.
A neutralidade como mito fundacional
Krylov descreve o papel do editor científico como uma espécie de funil epistemológico que separa o joio do trigo por meio do crivo da revisão por pares (sistema pela qual a ciência funciona: nossos pares avaliam a qualidade do que produzimos). Essa é uma imagem elegante, até mesmo ingênua, que reflete uma concepção datada de ciência como empreendimento puramente racional, guiado unicamente por fatos e isento de valores. O problema é que essa imagem nunca existiu. Minto: existe em nossos imaginários.
Um dos argumentos, talvez o mais forte da carta de Krylov, é a denúncia de que revistas como Nature Human Behavior estariam censurando estudos potencialmente danosos a determinados grupos. O argumento é de que isso soa arrogante, pois quem teria condições de decidir isso? No entanto, diariamente, editores científicos decidem o que é válido ou não, independente de qualquer orientação sobre o potencial danoso de um estudo. Chamar isso de censura é, a meu ver, confundir responsabilidade com controle ideológico.
A liberdade acadêmica é um valor essencial para o progresso científico, mas ela não é absoluta. Toda pesquisa tem implicações éticas e sociais, e ignorar essas dimensões pode ter sérias consequências. Reconhecer limites éticos não é restringir o pensamento ou a criatividade do cientista, mas situá-los no mundo que eles afetam.
Basta lembrar das implicações de estudos duvidosos divulgados durante a pandemia de Covid-19, que acabaram influenciando decisões políticas e sanitárias sem respaldo sólido, com efeitos diretos sobre a gestão da crise.
A pesquisadora Ourania Filippakou, da Brunel University London, defende que a docência e a pesquisa não podem se esconder atrás do mito da neutralidade. Para ela, cientistas e educadores têm a responsabilidade de atuar como intelectuais públicos, conectando o conhecimento que produzem a causas que ampliem a democracia e a justiça social.
O espelho de Anna
O que a carta de Krylov parece expressar, em última instância, é um desejo de neutralidade do empreendimento científico. O que chamamos de neutralidade costuma ser apenas a universalização dos valores dominantes de gênero, de classe, de idioma, de localização geográfica. Quando se defende a neutralidade, frequentemente se defende, sem perceber (ou intencionalmente), a continuidade das desigualdades já institucionalizadas.
Mas a carta de Anna Krylov é, paradoxalmente, útil. Ela nos obriga a olhar para o espelho, a confrontar nossas próprias crenças sobre o que é ciência e reconhecer a posição política que inevitavelmente sustenta essas crenças. Aderir a políticas de diversidade e inclusão não é o mesmo que abrir mão do rigor. Significa, muitas vezes, enfrentar o desconforto de perceber-se como um agente político dentro da própria ciência, alguém que participa das escolhas (conscientemente ou não), das exclusões e das hierarquias que moldam o que chamamos de conhecimento.
Até aqui, tratei de Krylov, a autora, e de suas ideias. Mas é a Anna, a pessoa por trás da cientista, que gostaria agora de responder. Anna escreveu: "Não consigo deixar de me perguntar: fui convidada para revisar o manuscrito por causa da minha expertise no assunto ou por causa dos meus órgãos reprodutivos?".
Talvez, Anna, você tenha sido convidada pela combinação das duas coisas. Pela sua competência como cientista, potencializada, enriquecida e particularizada pela experiência, pelo olhar, pela história, pelo corpo. A experiência que o corpo proporciona, na construção do conhecimento, pode conferir um olhar diferente daquele que outros corpos possuem. E essa diversidade é precisamente um dos critérios para tornar o empreendimento científico criativo, inovador e intelectualmente fértil.
Na biologia, um caso emblemático é o de Lynn Margulis (1938-2011), responsável por uma teoria que buscou explicar a origem de determinados corpúsculos nas células eucarióticas. Sua proposta era audaciosa e contrariava as ideias dominantes. Seu artigo foi rejeitado repetidas vezes, até que finalmente encontrou um editor disposto a reconhecer sua originalidade. Não sei se a ideia nasceu do fato de Margulis ser mulher, mas certamente nasceu de uma mulher, e isso fez diferença.
Portanto, Anna Krylov, seu olhar importa. E muito.
Ulysses Paulino de Albuquerque não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.