'Continuamos capazes de superar tormentas', diz Mario Sergio Cortella

Filósofo, educador e escritor elogia a 'ciência colaborativa', que na pandemia trouxe 'mais esperança'; e quer em 2021 'uma regularização da nossa convivência'

20 jan 2021 - 05h10
(atualizado às 11h37)

Filósofo, educador, ex-carmelita, escritor, professor, palestrante: a soma de atividades às quais se dedica o paranaense Mario Sergio Cortella* basta para bem defini-lo. No futebol, diriam que ele "joga com as 11 (camisas)". Na vida real, ele não para de escrever, dar palestras, fazer comentários em rádio e TV - e assim construiu uma cabeça pensante ampla e irrestrita sobre o País, o mundo, as pessoas, os valores.

Por exemplo, ao falar da pandemia nesta entrevista para o projeto Cenários: "Continuamos capazes de superar algumas tormentas. (...) Mas, por outro lado, somos mais tolos como humanidade, individual e coletivamente, do que seria bom". Sempre dedicado a contornar arestas, Cortella afirma também: "Ser pacifista não significa ser passivo; passivo é quem recua e se acomoda". Sobre política e liberdade, ele adverte: "Democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão". E coroando esse conjunto, neste 2021 tão incerto, ele enfatiza o humano presente nos desafios diários trazidos pelo coronavírus: "Não posso chegar a 2022 são e salvo e, ao olhar para trás, ver que abandonei tanta gente que também deveria caminhar e chegar bem". A seguir, principais trechos da entrevista.

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Terminamos um ano nada fácil, com pandemia e economia em queda. Que balanço o sr. faria desse 2020?

A primeira coisa é que teríamos de retroagir ao que cantamos lá atrás, no 31 de dezembro de 2019. Mas para agora cantar 'Adeus ano novo, feliz ano velho...'

O que essa paralisia, essa quarentena, teve de bom e de ruim?

Uma das coisas ruins é a nossa perplexidade quanto à dificuldade para enfrentar o vírus, mesmo com todo o avanço tecnológico e pujança de algumas economias. Ele se mostrou muito mais resistente. Esse é o lado das consequências danosas, o desarranjo nas nossas vidas. O lado bom é enxergar que, quando fazemos ciência colaborativa, percebemos que é um momento difícil mas não intransponível, e isso nos oferece um pouco mais de esperança. Continuamos capazes de ultrapassar algumas tormentas.

Acha que o mundo vai sair mais unido dessa batalha?

No meu campo de desejo, sim, mas ele não corresponde à realidade. Seria ótimo que saíssemos com mais inteligência, mais solidariedade. Mas minha razão mostra que não. Ela mostra que nós somos mais tolos como humanidade, individual e coletivamente, do que seria bom.

A experiência prática mostra que, se você coloca 10 crianças numa sala e dá uma bola para cada uma brincar, você volta horas depois e encontra uma criança com três bolas, uma com o olho roxo, duas chorando. Tem como mudar a natureza humana?

Freud já dizia que só uma civilização - ou seja, um ordenamento mais restritivo das condutas - dará saída à nossa forma individualista de ação. Enquanto natureza, enquanto indivíduos, somos seres competitivos, egoístas, temos a autopreservação como horizonte. Mas não somos só isso. Temos necessidade de agregação, pois, do contrário, perecemos. Naquela sala das crianças, basta uma delas depender das outras que ela notará a necessidade de negociar um modo de convivência.

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Essa disputa tornou-se maior quando o homem começou a se juntar em comunidades. É por aí?

Como nômades, não havia possibilidade de tanto encontro nem tanto atrito, mas isso reduzia nossa capacidade de sobrevivência. É só imaginar uma pessoa sozinha numa casa. Ela pode fazer o que desejar, mas está mais desprotegida. Não tem com quem contar. Como disse o poeta inglês John Donne, nenhum homem é uma ilha. Somos um arquipélago, temos de viver agregados, com todas as perturbações que isso nos traz.

O sr. fala muito sobre ética. Como falar sobre ética no Brasil de hoje?

É necessário fazê-lo. A ética não foi suspensa durante a pandemia. E esta não é, de modo algum, uma espécie de passaporte para o desvario. Ao contrário. É preciso que a gente não rompa todas as formas de ligação.

Mas quem deverá decidir o que é o bem e o que é o mal?

É o conjunto de uma sociedade. Alguns usam a religião para chegar a essa definição, outros a filosofia. Há 30 anos, não haveria problemas para um homem se ele fosse inconveniente com uma mulher. Hoje, não é mais assim. Se marido e mulher se estapeassem, diziam: 'Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher'. Hoje, é um delito a ser punido. Nosso País, como qualquer outro, tem momentos em que a ética da decência é protegida. Em outros, a ética é a da indecência. Não temos ainda uma ética universal. O que chegou mais perto foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948.

Então, é questão de ponto de vista.

É o tempo histórico. Veja um exemplo concreto: os Dez Mandamentos da lei mosaica, que influenciaram o cristianismo e o islamismo. No 9.º mandamento, está dito que 'não cobiçarás a mulher do próximo'. Mas ele foi produzido no século 14 a.C. e está ligado aquele tempo. E foi escrito referindo-se à propriedade, não à fidelidade. O mandamento inteiro estava escrito assim: não cobiçar o boi, a terra e a mulher do próximo. Ou seja, o escrito vale no seu momento, no seu tempo.

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Por falar em momento, o que pensa do cenário político do País, com toda a atual polarização?

O general Eurico Gaspar Dutra, presidente do Brasil logo após a II Guerra Mundial, dizia que a democracia era uma plantinha frágil que era preciso regar todos os dias. Nesse sentido, temos de cuidar de uma convivência que admita divergências, mas na qual o conflito não se transforme em confronto. Vemos hoje no Brasil, e em outros países, pessoas não admitindo que haja uma postura diferente da sua. Ao invés do diálogo, do convencimento, recorrem a uma retórica furiosa, tentando aterrorizar a outra pessoa.

De onde acha que vem tudo isso?

Do fato de termos hoje uma sociedade mais competitiva - a globalização levou a uma disputa maior pelos territórios econômicos. Ser pacifista não significa ser passivo. Passivo é quem recua e se acomoda. Democracia não é ausência de ordem, é ausência de opressão. Mas, hoje, há uma desvalorização desse tipo de paz, alguns desejam vencer pela força.

A pandemia deixou claro que a desigualdade aumentou muito nos últimos tempos. Como sair dessa armadilha?

O capitalismo é uma experiência de 500 anos. Não dá para comparar com outras experiências que não tiveram esse tempo de maturação. Uma das principais economias capitalistas de hoje, a China, segue uma orientação não originalmente capitalista. Nos países nórdicos, se tentou uma economia de base social-democrata, que tem outra percepção. É necessário que exista essa possibilidade, de um capitalismo sem má distribuição de renda. A pandemia mostrou que estamos todos no mesmo barco, mas não no mesmo lugar dentro do barco.

A percepção da pandemia levou uma parte dessa população mais privilegiada a admitir que não dá para viver num mundo assim, e a buscar uma forma de ajudar. Como vê isso?

Há grandes capitalistas, pelo mundo, que defendem uma taxação maior das grandes fortunas e entendem que essa taxação permitirá uma distribuição maior do acúmulo de renda. Um dos maiores bilionários do planeta, Bill Gates, distribui por seu instituto, para obras sociais, 90% do que tem. No nosso País, também essa luz foi acesa. Mas não tenho tanta clareza quanto à extensão disso.

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Aqui os números apontam que uma taxação de grandes fortunas daria um valor muito pequeno para mudar essa desigualdade. Há uma reforma tributária em curso que não diminui o que vai ser arrecadado. Aliás, aumenta. Como a gente resolve isso?

Há nisso uma ironia histórica. Se a iniciativa privada fosse capaz de promover sempre negócios bem-sucedidos, não haveria falências nem concordatas.

Mas os governos não quebram porque não podem.

Alguns governos até podem. E há tanta transação entre privado e público que, toda vez que há alguma turbulência em uma dessas duas áreas, a outra vem em seu socorro. Na grande quebra da economia americana em 2008, o primeiro movimento foi um aporte de recurso público para segurar a estrutura bancária. A questão nem é entre público e privado, é entre boa e má gestão.

Os governos, historicamente, são mais reativos do que proativos. Acha que o Estado, além de regulador, deveria poder influir em outras coisas?

Claro, em várias áreas. Há atividades que são responsabilidade do setor público, mas não a ponto de haver para elas uma estatal. Educação escolar, saúde, segurança pública... O que não aprecio é uma oscilação que vem do século 19, pela qual uma atividade que está no setor público e se torna lucrativa passa para o setor privado. E, se depois de algum tempo enfrenta uma dificuldade, retorna ao poder público, que fica com o prejuízo.

Acha que o brasileiro tem mais dificuldade para lidar com isso do que outros povos?

Nossa sociedade foi se organizando num tempo relativamente recente. O escritor Lima Barreto já dizia que o Brasil não tem povo, tem público. Ou seja, ele fica participando como espectador. Nossa independência foi feita pelo colonizador, a República foi proclamada sem povo, o primeiro presidente era um militar monarquista. E muita gente, no Brasil, tem demofobia, tem pânico da participação popular, imaginando que, se essa população for deixada a decidir, será sempre capaz de fazer bobagem. Não acho que sejamos diferentes de dinamarqueses, suecos ou chilenos, apenas a nossa experiência é diferente. Nossa democracia tem só 32 anos.

Seria capaz, a partir do que temos hoje, de projetar uma direção para este ano de 2021?

Posso falar do que é o meu desejo. Que neste ano a gente tenha uma regularização maior da nossa convivência, da nossa maneira de estar socialmente no mundo. Não posso chegar a 2022 são e salvo e, ao olhar para trás, ver que abandonei tanta gente que também deveria caminhar e chegar bem.

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*PROFESSOR DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E DE TEOLOGIA NA PUC-SP, PROFESSOR CONVIDADO NA GVPEC/EAESP, ESCRITOR E SECRETÁRIO DA EDUCAÇÃO (1991-92) DE SÃO PAULO

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