'Negacionismo é a grande arma que inimigos usam contra a democracia', diz Miriam Leitão

JORNALISTA E ESCRITORA PERMANECEU MAIS DE 40 ANOS CALADA SOBRE TORTURAS QUE SOFREU NA DITADURA MILITAR; ELA FALA SOBRE COMO HOJE É ALVO FREQUENTE DE BOATOS NAS REDES SOCIAIS

10 dez 2025 - 05h45

Miriam Leitão tinha 19 anos no verão de 1972. Num domingo, dia 3 de dezembro, saiu de casa, na favela no Morro da Fonte Grande, em Vitória (ES), para ir à praia do Canto com o namorado, Marcelo Netto. Ela estudava História e trabalhava numa rádio da capital do Espírito Santo; ele cursava Medicina. Ela estava grávida de um mês; ele ainda não sabia que seria pai. Ela era ligada ao PCdoB, espalhava panfletos e fazia pichações contra a ditadura. Ele tinha acabado de liderar a única greve de estudantes do Brasil de 1972. Os dois foram cercados, algemados e presos pela Polícia Federal naquele dia, na praia mesmo, sem uma ordem de prisão, sob a ameaça de uma metralhadora.

Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuniu lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar. Na foto, Ivo Herzog e Miriam Leitão.
Ato interreligioso realizado na noite deste sábado, 25 de outubro de 2025, na Catedral da Sé, região central de São Paulo, reuniu lideranças religiosas, familiares e movimentos sociais em homenagem a Vladimir Herzog e a todas as vítimas da ditadura militar. Na foto, Ivo Herzog e Miriam Leitão.
Foto: Fábio Vieira/Estadão / Estadão

Por 40 anos, a jornalista permaneceu em silêncio sobre o que aconteceu naquele dia e nos três meses seguintes. "Eu sinceramente não falava de mim porque achava que outras pessoas tinham sofrido tão mais, tinham voltado tão sequeladas. Eu tinha reconstruído a minha vida. E decidi ficar no jornalismo e deixar as vítimas que tinham dores maiores falarem do assunto", disse, em entrevista ao Estadão Verifica.

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O silêncio foi quebrado em 2014, quando Miriam fez um depoimento ao jornalista Luiz Cláudio Cunha, publicado originalmente no site Observatório da Imprensa. A gota d'água, disse ela, foi uma nota divulgada pelas Forças Armadas após uma sindicância da Comissão Nacional da Verdade, criada por determinação da presidente Dilma Rousseff, que também foi perseguida, presa e torturada na ditadura. Dilma havia "estressado" as Forças Armadas, que não só não reconheciam a tortura, como disseram na nota que não houve desvio de finalidade das instalações militares usadas durante o regime.

"Foi o momento que caiu a ficha. Não é a minha memória, é uma memória coletiva da qual eu sou testemunha", recorda.

Miriam, como testemunha dos horrores dos anos de chumbo, havia sentido na pele o medo e a tortura ocorrida em um daqueles lugares. Com um mês de gestação, foi obrigada a dizer aos torturadores que estava grávida. De nada adiantou, já que foi trancada nua em uma cela escura na companhia de uma jiboia de dois metros batizada com o nome dela. A cobra se revezava com cães "babando de raiva" que se tornavam mais agressivos à medida que os torturadores a chamavam de "terrorista".

Ela também foi ameaçada de estupro e de fuzilamento em um paredão do Forte de Piratininga, em Vila Velha (ES), mas sobreviveu. Anos depois, revisitou o local das torturas e, em outra ocasião, se deparou com seu torturador. "Você encontrar na velhice, de novo, saudável, o inimigo que te infelicitou na juventude não é fácil. Não é fácil", avalia.

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Miriam ficou presa três meses e acabou absolvida das acusações de tentativa de organizar o PCdoB no Espírito Santo, de aliciamento de estudantes, de panfletagem e pichações. Apesar disso, centenas de publicações nas redes sociais ainda viralizam, hoje, com frequência, afirmando que a jornalista participou da luta armada, assaltou bancos e até assassinou pessoas. Um futuro que ela não esperava, principalmente depois da redemocratização. Leia, a seguir, a entrevista com a jornalista e escritora:

O Estadão Verifica já checou diferentes conteúdos virais com alegações falsas sobre sua atuação durante a ditadura militar. Como é reviver esse período e ver sua história pessoal sendo alvo de desinformação nas redes sociais?

O Estadão Verifica me ajudou várias vezes, em momentos em que eu não tinha toda a compreensão do que estava acontecendo. Ficou claro para mim ao longo desses anos de sofrimento que criaram um produto. O escritório do ódio produziu alguns produtos e esses produtos foram sendo repetidos. [Os ataques] sempre aconteciam nos momentos em que eu, de alguma forma, era vista como uma ameaça: tinha feito uma coluna mais contundente, uma entrevista ou qualquer coisa que me posicionasse mais fortemente pela democracia, contra o governo Bolsonaro.

Isso, na verdade, é uma coisa muito bem arquitetada, é um plano, é um projeto de desestabilização. É construir uma história falsa sobre a pessoa para reduzir credibilidade, para desestabilizar emocionalmente, e isso tem objetivos muito precisos. É a mentira como método, como os nazistas faziam. Hoje, eu estou mais forte e sendo capaz de raciocinar, mas muitas vezes eu não fui. Fui muito indefesa, porque eu não sabia o que era aquilo, como lidar com aquilo. Várias vezes a avalanche me paralisou. Eu não sou uma pessoa que quer ficar em bate-boca público.

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Eu nunca deixei de dizer que a democracia corre perigo. Quem acreditou na democracia, tinha voz e colocou a sua voz a favor da democracia, foi atacado no governo Bolsonaro da forma mais violenta possível. Esse era o projeto. Hoje, eu entendo assim. Claro que isso eu entendo de forma racional. As cicatrizes, eu carrego. Se juntam às outras velhas cicatrizes.

Apesar de haver um consenso histórico de que o regime militar foi, sim, uma ditadura, ainda hoje circulam conteúdos que tentam negar o período autoritário. Como alguém que foi perseguida pela ditadura, como a disseminação desses materiais te atinge?

Para mim, é o temor da repetição. (A ditadura) se nega para existir. Ela nega a sua característica autoritária porque o projeto era autoritário. Foi muito aflitivo ver isso nas pessoas, nos mais jovens. Uma vez eu estava numa festa de um jovem que é filho de uma amiga minha, e outros jovens sentaram comigo, em 2018, o bolsonarismo ascendente. E eles começaram a dizer que não tinha tido ditadura. O que que eu fiz? Eu não vou brigar com os jovens. Eu vou explicar para os jovens. Eu vou ouvir pacientemente o jovem e vou tentar convencer o jovem. Então, eu fiz isso. Eu saí de lá como se tivesse tomado uma surra, meu corpo todo doía. Porque eu passei o tempo todo ouvindo jovens dizendo os maiores absurdos e com muita calma tentando desfazer parte daquele estrago.

Há muitos jovens que não viveram a ditadura e, apesar disso, eles pedem a volta da ditadura. Você acha que essa negação é resultado de termos uma democracia muito jovem?

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O Brasil é um país que, até a redemocratização, tinha vivido a maior parte do seu tempo sob regime autoritário. A gente tem essa marca na nossa sociedade. Eu sempre achei que, porque a gente não viu o ditador ser preso, a gente criou um ambiente para essa negação. Talvez, cada país tenha a sua própria razão. Porque mesmo os países que fizeram suas comissões da verdade e que puniram os militares hoje o fortalecimento da extrema-direita. A extrema-direita é um perigo. Foi um perigo na Segunda Guerra Mundial, fez o genocídio judaico. Hoje, está em vários governos, inclusive em Israel. E está em outros países. A força da extrema-direita no mundo ficou muito mais assustadora nos últimos anos.

Uma das estratégias mais comuns para negar a ditadura é a ideia de que o período militar teria sido uma 'guerra' entre o Estado e os guerrilheiros — colocando ambos os lados em um mesmo pacote, como se fossem igualmente violentos. Como você enxerga essa narrativa?

É a mesma narrativa da época. Na época se dizia que as Forças Armadas assumiram o poder para evitar o comunismo. Mas a ameaça não estava posta, a gente sabe os fatos históricos. O João Goulart era um estancieiro, um proprietário de terra. Ele só tinha uma visão de esquerda. E depois que terminasse o governo dele, certamente o eleito em 1965 seria Juscelino Kubitschek, que era conservador, uma pessoa de centro, mas um democrata. E ele era muito popular.

"Fizemos para evitar o comunismo" era a primeira falsidade. E depois, durante todo o período, inverteu-se a ordem natural das coisas. O AI-5 proíbe qualquer participação, mata o estudante no Calabouço, a arte não pode fazer o seu trabalho, o Roda Viva é avacalhado pelo Comando de Caça aos Comunistas. As portas vão sendo fechadas de tal forma que um grupo entendeu que, talvez, só a luta armada [resolveria]. Então, foi uma reação de defesa. Mas, na época, era isso que se dizia: "O governo fez o AI-5 porque os comunistas estão ficando mais fortes". Era sempre assim, essa inversão da lógica.

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Mas vai ficando cada vez mais difícil sustentar essa tese. Quando eles matam Vladimir Herzog, que nunca tinha pegado numa arma, fica claro que a ditadura mesmo queria se alimentar.

O negacionismo é uma técnica. Você nega a existência da ditadura para a ditadura existir e ficar aceitável. É parte do projeto de trazer de volta o governo autoritário.

Na época da ditadura, você e tantos outros se mobilizaram contra a opressão do Estado. Em algum momento, chegou a imaginar que, no futuro, os movimentos de resistência poderiam ser distorcidos e atacados, como são hoje?

Não. Na verdade, durante o período que eu estava lutando, a gente vivia querendo sobreviver a cada dia. "Eu sobrevivi hoje, sobrevivi, vamos sobreviver". E foi uma noite interminável. Na alegria de ver a volta da democracia, eu não imaginava esse futuro quando eu chorava na Praça da Sé, abraçando a bandeira nacional, nas Diretas Já, ou quando eu vi a eleição do Tancredo [Neves], ou quando eu vi a saída do último general do Palácio.

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A palavra do Ulysses Guimarães me ajudou a atravessar a dureza da ditadura. Ele falava: "Olha, estamos na travessia, vamos navegar, vamos passar". Eu votei no Ulysses em 1989, como se fosse uma dívida de gratidão. Quando ele levanta a Constituição e fala: "Temos ódio e nojo à ditadura", está aqui a Carta da Cidadania, agora o Brasil recomeça. E o que que eu pensei? A gente está vivendo muitos problemas, mas a gente vai resolver um por vez. Independentemente do governo, a gente vai melhorar a sociedade. Eu achei que a gente ia melhorando o País aos poucos. Nunca ter o País ideal, mas uma democracia. Um retrocesso a ponto de dizer que não foi ditadura, isso, realmente, não estava no meu radar.

Quais são os riscos que o negacionismo histórico representa para a democracia brasileira?

Primeiro, eu queria dizer que essa é a minha grande bandeira. As outras bandeiras, eu tenho várias, elas só podem avançar na democracia. Eu sou uma democrata, decidida a combater os ataques à democracia, decidida a defender a democracia até o último dia que eu estiver com vida. Eu entrei na vida cívica lutando pela democracia, morrerei lutando pela democracia. Negar é parte do projeto da permanência, como foi no racismo. O negacionismo é a grande arma que o inimigo da democracia usa contra a democracia.

Assim como você, a ex-presidente Dilma Rousseff também é alvo de boatos sobre o período da ditadura. Você acredita que esses ataques têm relação com a misoginia e com o modo como mulheres são retratadas na política e na história?

Eu acho que sim. Todos são atacados, as mulheres são atacadas um pouco mais do que os outros. Evidentemente, a misoginia agrega uma agressividade a mais. Às vezes, a misoginia se revela através do etarismo. Quantas vezes eu fui acusada de ser "velha". E eu fico pensando: "Meu Deus, eu acho tão maravilhoso eu ser velha!". Porque significa que quando eles apontaram aquela arma na minha cabeça, dizendo que podiam me matar, eles não me mataram. Porque quando eles, durante a noite, saíram dizendo "Vamos te matar", eles não me mataram. Eu sobrevivi, eu sobrevivi a tudo. Os homens são atacados pelas ideias. Ninguém fala que um homem é feio, que ele é velho.

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A Lei de Anistia de 1979 foi promulgada em um contexto de transição do regime militar, mas acabou servindo também para proteger agentes da repressão, o que resultou em impunidade por crimes da ditadura. Hoje, vemos o debate sobre um projeto que pretende anistiar os envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. Como você enxerga essa comparação?

Eu não fui anistiada porque eu fui absolvida, mas não significa que eu tenha qualquer tipo de avaliação negativa de quem foi anistiado. Todo mundo pedia a anistia. A anistia ampla, geral e irrestrita era para trazer de volta o irmão do Henfil, era para trazer de volta o Fernando Gabeira, era para trazer de volta a gente que fazia falta ao Brasil. E você imagina o que bem fez ao Brasil o Betinho depois que voltou, com toda a Ação da Cidadania. Pensa o quanto que ele fez falta ao Brasil. Era este o movimento pela anistia, era um movimento para trazer de volta quem estava fora e para tirar a punição de quem já tinha sofrido muito no combate à ditadura, ou por prisão ou por tortura. Era essa a ideia, não era evidentemente de perdoar os torturadores. Eles distorceram aquilo.

E agora, a questão é não perdoar quem estava no poder e manipulou a estrutura de Estado contra a democracia. Não pode ter uma anistia. São duas anistias absolutamente distintas. Uma [a de 1979] era para trazer de volta quem estava no exílio, quem tinha se disposto na luta pela democracia, e a outra [de agora] era para quem usava o aparelho do Estado e todos os empresários que financiaram mais uma conspiração.

O Brasil tem uma história ruim demais para achar que pode, cada vez que tem uma tentativa de golpe, passar a mão na cabeça. O presidente Jair Bolsonaro passou o tempo todo conspirando. Ele não governou, ele conspirou em seu próprio governo. Ele não atendeu as pessoas em desespero, morrendo, os 700 mil brasileiros [na pandemia]. Ele gastava o tempo todo nessa obsessão de ruptura com a democracia.

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Em meio às discussões sobre a trama golpista após as eleições de 2022, você acredita que o Brasil está mais preparado para revisitar o passado e construir políticas de memória mais sólidas?

Eu acho que sim. Eu tenho esse otimismo porque estou vendo o que eu nunca vi na história de outras rupturas democráticas no Brasil. Nunca teve punição e agora está tendo. Isso faz parte do processo de cura. Eu acho que o Brasil fica mais forte a partir dessa condenação, principalmente dos generais. Eu tenho falado muito com os militares da ativa e eles ficam desconfortáveis. Mas, ao mesmo tempo, eles acham que isso vai poder separar o joio do trigo. Eles acham que a maioria é institucionalista, hoje. Mas eu acho que a tirania, os governos autoritários, eles são um inimigo que está à espreita. Eles permanecerão à espreita.

Eu tenho motivos para ter uma visão positiva porque eu entrei na vida adulta no meio do AI-5. Eu precisei esperar algo melhor e eu já vi o Brasil melhorar. Agora, estou sendo entrevistada neste momento por dois jovens que têm a consciência exata dos riscos que o País corre. Essa entrevista, por exemplo, me dá esperança. Eu preciso da esperança. E eu acho que a minha esperança vem do fato da vida vivida. Você tem 15 anos quando se abate sobre o País o AI-5. É uma coisa que muda a pessoa, a natureza. Os meus anos dourados da juventude, eu vivi nos anos de chumbo. Eu costumo contar que eu votei pela primeira vez quando o meu filho mais velho votou pela primeira vez. A minha vida cívica foi roubada pelo projeto autoritário. Daí para diante, eu vejo o País melhorando. Teve o risco de um retrocesso e [o País] reagiu.

Mas ao mesmo tempo, minha esperança é uma esperança atenta, alerta. E como eu prometi, enquanto eu tiver consciência de ficar e defender a democracia, eu ficarei. Eu estou em estado de alerta e eu sempre estarei em estado de alerta. Foi por isso que eu escrevi, desde o primeiro momento do governo Bolsonaro, que era um governo autoritário, era um projeto autoritário. Eu nunca, nunca me enganei com a natureza daquele projeto.

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