O que estão compartilhando: vídeo em que um médico afirma que o paciente já está doente quando os exames de colesterol, triglicerídeos e glicemia estão alterados. Ele recomenda a substituição desses exames por outros três. O de homocisteína, que indicaria Alzheimer precoce; o de proteína C-reativa (PCR), que indicaria maior chance de enfarte do miocárdio; e o de insulina de jejum, que indicaria problemas no metabolismo e perda de memória.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é enganoso. Os exames recomendados são complementares, e não substitutos daqueles que medem colesterol, triglicérides e glicemia de jejum. Para especialistas ouvidos pelo Verifica, os exames indicados no vídeo não são de rotina.
O médico do vídeo também erra ao descrever os objetivos dos exames. A homocisteína não indica Alzheimer precoce, embora possa confirmar uma suspeita de deficiência de vitamina B12, que é uma das causas da demência. A PCR é um importante marcador de risco cardiovascular, mas não substitui a medição do colesterol. Por fim, não há relação entre a insulina de jejum e a perda de memória.
O autor do vídeo foi procurado, mas não respondeu até a publicação deste texto.
Saiba mais: O conteúdo investigado foi publicado no Instagram e no Facebook por José Bento de Souza, médico com registro de especialidade em Ginecologia e Obstetrícia no Conselho Federal de Medicina (CFM). No vídeo, ele desestimula as pessoas a fazerem exames de rotina, como colesterol, triglicerídeos e glicemia de jejum.
O conteúdo acumula mais de 2 milhões de visualizações nas duas redes sociais.
Em vídeo viral, médico desinforma ao associar exames de anticorpos à proteção da Coronavac
Exames mencionados por médico não identificam doenças neurológicas
A homocisteína é um aminoácido produzido naturalmente pelo organismo durante o metabolismo de algumas proteínas. O aumento dessa substância pode indicar risco de algumas doenças cardiovasculares e de deficiência de vitaminas, como a B12. Uma alteração também pode ser indicativo de condições genéticas raras, como a homocistinúria - que pode afetar olhos, ossos, vasos e sistema nervoso.
No vídeo viral, o médico diz que a homocisteína acima de 14 µmol/L aumenta em duas vezes o risco de Alzheimer precoce. Mas não é bem assim. De acordo com a neurologista Elisa de Paula França Resende, coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia, o exame pode ser pedido por neurologistas, mas ele não "indica" Alzheimer.
"Uma das causas da demência é a deficiência da vitamina B12. Quando ela está baixa, a pessoa pode ter um comprometimento cognitivo. A gente trata e isso pode se reverter ou não", afirmou.
"Quando a vitamina B12 está normal e há uma suspeita de que ela não está funcionando, a gente pode usar a homocisteína. Se ela estiver alta, pode indicar uma deficiência oculta da B12. Mas não tem uma relação com Alzheimer, isso não dá para dizer", explicou.
Em outro trecho, o autor do vídeo afirma que as pessoas devem fazer o exame de insulina de jejum, que precisa estar abaixo de 10 mU/L para manter uma longevidade maior e uma vida mais saudável. O médico acrescenta que, se a insulina estiver abaixo de 6 mU/L, a longevidade é muito maior.
No vídeo, o médico afirma que insulina acima de 10 mU/L indica problemas no metabolismo do hipocampo e perda de memória. Mas a alegação não faz sentido, de acordo com Resende. O hipocampo é a área do cérebro que cuida das memórias novas.
"Isso pode descartar completamente, porque não tem nenhum estudo", afirmou.
Os exames citados pelo autor do vídeo não são comumente usados por neurologistas para rastreio de doenças como demência e Alzheimer. Eles só são utilizados se houver uma suspeita muito forte envolvendo algum marcador que aparece nesses exames.
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Não é verdade que exames só se alteram quando a pessoa está doente
O autor do conteúdo enganoso diz que, quando os exames de colesterol, triglicerídeos e glicemia estiverem alterados, a pessoa já está doente. Ele sugere que esses exames não servem para monitorar o risco de doenças. Especialistas alertam que isso não é verdade.
A realidade é que esses exames são marcadores de risco, não de diagnóstico tardio, de acordo com a cardiologista Maria Cristina Izar, presidente da Sociedade de Cardiologia de São Paulo (Socesp) e professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
"(Esses exames) podem prever anos antes um diabetes, por isso eles são utilizados como estratégia de prevenção", disse.
Izar explica que o colesterol ruim, chamado de LDL, é o principal marcador de risco de doenças cardiovasculares. O médico do vídeo indica substituir o exame de colesterol pelo de PCR - mas, de acordo com a cardiologista, esse segundo é um marcador complementar.
"O problema é a forma como ele coloca essas informações, 'detonando' aquilo que já é consagrado. O marcador mais estudado e mais estabelecido no risco cardiovascular é o LDL colesterol", afirmou.
De acordo com Izar, a PCR é um marcador altamente sensível, que se altera muito em quadros agudos de infecções. Outro fator que altera os níveis de PCR é a obesidade.
"É um marcador importante, e complementar, mas não substitui o colesterol", disse Izar. "Não se faz prevenção de forma isolada, mas com evidências sólidas e com acompanhamento médico", complementou.
A cardiologista lembra que o monitoramento do colesterol LDL ajudou a reduzir o número de enfartes.
"Se os exames não fossem importantes, as taxas de infarto não teriam caído nas últimas décadas. Os estudos clínicos mostram que, para cada 1 mmol/L de LDL que se reduz, a gente vê uma queda de cerca de 22% de eventos cardiovasculares", afirmou.
Para o médico Carlos Eduardo dos Santos, diretor de Acreditação da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), o importante é lembrar que um exame não exclui o outro.
"Você tem que fazer (os exames de rotina) até para decidir a abordagem do ponto de vista de terapia. É importante ter essa avaliação", ressaltou.
Santos lembra ainda que todos os exames citados no vídeo estão disponíveis para os pacientes, mas é importante passar por uma avaliação médica. É o profissional quem vai avaliar os critérios para solicitar cada um deles.