Lacraia marcou toda uma geração como ícone travesti

12 anos depois da morte, a dançarina é lembrada e reverenciada pela comunidade LGBTQIA+

30 jun 2023 - 05h00
"Ela era um marco, um ícone do movimento LGBT”, contou MC Serginho
"Ela era um marco, um ícone do movimento LGBT”, contou MC Serginho
Foto: Reprodução Instagram/@mcserginhorj

Uma das mais importantes escritoras do século 20, a americana, assumidamente lésbica Gertrude Stein, escreveu certa vez: “Você é visto como tolo se dança, você é visto como tolo, se não dança, então, é melhor que você dance”. Lacraia resolveu dançar. 

No começo dos anos 2000, não teve no Brasil quem assistisse a programação da TV aberta que não fosse, em algum domingo qualquer, impactado por uma figura de sorriso largo, braços levantados e todo o corpo em movimento acelerado, quase como uma minhoca elétrica. Ou mesmo, uma lacraia. Foi por conta dessa agilidade corporal, inclusive, que aquela dançarina que fazia sucesso na TV e nos palcos, primeiro, cariocas e depois de todo o mundo, recebeu o apelido de seu parceiro artístico, MC Serginho, com o qual ficou famosa. 

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Cria do Jacarezinho, bairro da zona norte do Rio de Janeiro, antes de ser conhecida como a dançarina de funk Lacraia, se apresentava em boates sob a alcunha de Margarete Robocop e Volpi Jones (em homenagem a cantora Grace Jones) e trabalhou também como camelô, cabeleireira, maquiadora e camareira em uma sauna. Mas foi como Lacraia e em parceria com MC Serginho, que se tornou um ícone do funk carioca e, sobretudo, uma pioneira dentro da cena funkeira para a comunidade LGBTQIA+. 

Há 12 anos, faleceu Lacraia. Há conflitos sobre a causa da morte. Alguns veículos apontaram para pneumonia e outros falaram em tuberculose. Apesar disso, sua imagem, produção artística e ativismo permanecem na lembrança de muitos. Seja por quem viveu o momento emblemático da nacionalização do funk carioca, seja por quem tenha se sentido representado de alguma forma e se reconheça hoje, representante desse legado histórico.

É o caso da Caia Coelho, Conselheira Estadual dos Direitos da População LGBT em Pernambuco, articuladora política e vice coordenadora da Nova Associação de Travestis e Pessoas Trans de Pernambuco. Caia tem 30 anos, portanto, era uma criança no momento em que Lacraia se tornou um nome tão representativo para a comunidade que, naquele tempo, era resumida a sigla GLS. 

Em 2015, Caia, se deparou com a manchete: “Mãe de Lacraia conta que o filho não era feliz”. Na entrevista, Maria Alice da Silva, conta que dentro de casa era bem diferente do que aparentava na TV. Essa informação intrigou Caia, que tinha a lembrança, “a sensação de que ela era muito feliz, muito alegre em suas lembranças”, disse a pesquisadora que foi buscar mais informações sobre as origens dessa melancolia que mãe diz na entrevista.

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“Comecei a procurar entrevistas e praticamente não encontrei. Como uma figura que eleva o nível de audiência de programas ao extremo, era disputada entre esses programas não tinha entrevista? Ninguém queria saber mais sobre ela? Quais eram seus planos para um futuro profissional?” Em 2020 sua pesquisa resultou numa thread no Twitter repleta de informações relevantes que, de certa forma, trouxe de volta a Lacraia que estava esquecida pela mídia que tanto a teve como objeto de consumo.

“Durante as minhas pesquisas, encontrei muitas Lacraias, mas ainda sentia falta de saber mais sobre a pessoa por trás do personagem imortalizado nas lembranças de quem a viu na TV”, disse Caia. Em alguns dos muitos vídeos assistidos pela pesquisadora, um, em especial, chamou a atenção de Caia Coelho.

Para Caia, um vídeo sintetiza boa parte do que foi o fenômeno Lacraia sob o ponto de vista da mídia. Em uma “performance” que hoje seria inconcebível, o apresentador Rodrigo Faro  usa de blackface (prática racista de pintura de pele usada para ridicularizar pessoas negras) e transface (prática transfóbica, normalmente protagonizada por homens cisgênero também de forma vexatória), tudo vestido de entretenimento,  realizado em tom de homenagem à dançarina e dando altos indices de audiência para o programa. “Durante a cena lamentável e violenta, a Lacraia aparece no palco, enquanto dubla o apresentador, que está nos bastidores. Quando ele enfim aparece, diz a seguinte frase: esse corpo é seu, mas a voz é minha. Ele a pede para dançar junto e logo depois a retira do palco de forma um tanto ríspida e segue “fantasiado” a apresentação do programa”. 

Outro exemplo que ajudou a pesquisadora a entender um pouco mais sobre as origens da suposta tristeza relatada pela mãe, foi numa entrevista dada para uma revista. Em 2007, a revista M…preencheu 14 páginas de conversa e fotos com Lacraia. Nas páginas, ela contava sobre o sonho de posar nua e o desejo de se tornar apresentadora, uma espécie de Xuxa preta. Caia procurou os responsáveis pela revista na época para saber mais e recebeu a informação de que eles queriam fazer um ensaio com ela “vestida de homem”. “Mesmo sabendo que era algo problemático, eles fizeram. Isso mostra muito para mim como a Lacraia era tratada como uma espécie de mercadoria que podia ser fabricada”, lamenta Caia. “Em outro programa, Lacraia encenou um casamento falso e o noivo não repetiu as palavras do padre e se recusou a beijá-la”, relembra Caia Coelho no conteúdo de sua pesquisa.

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Foto extraída de uma gravação em Mini-DV de 2003
Foto: Reprodução

O beijo da Lacraia

Um dos momentos mais esperados nas apresentações da dupla MC Serginho e Lacraia, acontecia quando o MC oferecia R$ 50 para quem subisse ao palco e desse um beijo na boca da dançarina. Em entrevista ao site Kondzilla, MC Serginho conta que a brincadeira surgiu em um show em Minas Gerais. “O pessoal curtiu a pampa e a gente levou pra todos os shows, uma marca no show da gente era o beijo na Lacraia, cinquenta reais pra beijar, eram dois minutos de beijo e o pessoal caia dentro, beijava mesmo”. Lacraia disse na entrevista para a revista M… que “No Salgueiro, era só cara marombado se debatendo para poder me beijar”. 

Se nos programas de TV o beijo na travesti era evitado, no palco era aceito. Lacraia, em entrevista para o livro Funk-se Quem Quiser: No Batidão Negro Da Cidade Carioca, de Adriana Carvalho Lopes, afirma que se reconhecia como uma figura importante para a TV brasileira. “Eu sei que ainda há muita violência, mas o que não pode na TV, pode no nosso palco”, observava.

Caia Coelho avalia como consciente a visão da artista sobre a realidade da comunidade trans na época. “A abjeção que chama ela de feia, de burra, que se recusa a beijá-la na televisão, mas que fora, no palco, havia até fila para o beijo. Algo que rompe o paradigma de que a travesti não é alguém para ser beijada em público”, exemplifica.

O encontro com MC Serginho 

O funkeiro MC Serginho e a dançarina Lacraia se conheceram no Jacarezinho
Foto: Reprodução Instagram/@mcserginhorj

Com sucessos como “Vai Serginho”, “Égua Pocotó” e “Vai Lacraia” que  lotavam bailes pelo Brasil turnês internacionais, a dupla fazia, quatro, cinco shows por noite. C Serginho conta que sofreu resistência por estar acompanhado de uma pessoa trans, menos no mundo do funk. A amizade entre os dois era maior do que tudo.

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MC Serginho e Lacraia se conheceram no Jacarezinho, onde moravam. “Minha relação com a Lacraia era de um irmão mais velho. Eu cuidava dela e ele cuidava de mim. Era um ser de muita luz”, diz o MC.

Sempre disponível para falar da parceira, Serginho diz que sente muita saudade. “A Lacraia era muito alegre e contagiava todo mundo com aquela alegria. Para mim, o que eu via é que ela era sempre feliz. Era reservada, mas quando sentia abertura, estava sempre sorrindo e levando alegria por onde passava.” Durante o sucesso da dupla, chegaram a marcar 22 pontos de audiência no programa Domingo Legal, do Gugu, batendo a liderança da Rede Globo.

Sobre a importância da parceira para a comunidade LGBTQIA+, Serginho diz que “Lacraia não era muito política (sic), mas ela contribuía se tornando conhecida e isso fortaleceu o movimento. Acredito que depois da Lacraia muita gente se revelou. Ela era um marco, um ícone do movimento LGBT”. E conclui que ela “marcou uma época de libertação para as pessoas que se assumiram LGBT”. 

Em 2009, depois de 10 anos de parceria, ambos seguiram em carreira solo. Serginho diz que não houve qualquer tipo de briga ou desentendimento. Os dois seguiram com a amizade como Serginho fez questão de frisar.

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Influência

Se há mais de 20 anos ver uma pessoa trans, preta e periférica em cima de um palco e, principalmente, na TV aberta, era algo quase que inimaginável, hoje a representatividade está presente na cultura brasileira graças a antecessoras como a Lacraia. Naquela época, pouco se falava sobre diversidade de gênero na cultura.

Nomes como MC Trans, Linn da Quebrada, MC Xuxu, Irmãs de Pau, Mulher Banana e muitas outras, se destacam por sua produção artística e ativismo. Estão em palcos de casas de show, em grandes festivais, dando entrevistas para a imprensa, em posição de destaque em reality show ou participando de novelas, representando pessoas trans. Mesmo que ainda falte muito apoio e incentivo cultural para artistas trans, o caminho tem sido trilhado com passos cada vez mais firmes.

A ativista e pesquisadora Caia Coelho nos lembra que não dá para falar de cultura brasileira sem falar das travestis. “Nos anos 50, as vedetes do teatro de revista, nos anos 80 as transformistas, nos anos 2000 as funkeiras, dançarinas, DJs, clubbers. Há muito pelo o que se orgulhar”, analisa. Muitas dessas artistas reconhecem que a trajetória da Lacraia foi fundamental na ampliação desses espaços.

Caia nos lembra em sua thread que nomes consagrados da música brasileira, além da bolha do funk, diziam gostar da artista. Caetano Veloso, Emilinha Borba e Rita Lee, que a chamou uma vez para dançar a música Erva Venenosa em uma apresentação na extinta MTV. Na entrevista para a revista M… ela diz que Caetano adorou a música feita pela dupla chamada Caetano Disse Não. “Dei o CD para Preta Gil entregar a ele, e ela me disse depois que ele gostou tanto que não tira do case do carro”, celebrava Lacraia.

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Neste mesmo contexto, as músicas de Lacraia e Serginho foram trilha dos jogos de vôlei de praia nas Olimpíadas de Atenas em 2004, da companhia de dança Deborah Colker, de programas como A Grande Família e Programa do Didi. Caia cita ainda a cineasta Barbara Wagner e ela própria, enquanto artista do audiovisual, por seu interesse em pesquisa museológica, como “crias” de Lacraia.

Quem seria Lacraia hoje?

“Acho que se ela estivesse viva teria se posicionado mais politicamente contra a transfobia no país. Que ela seria uma voz ativa. Declarações do Bolsonaro sobre pessoas com HIV no Brasil, que seriam gastos…tudo isso, acredito que ela ergueria sua voz”. Diz, Caia, em um exercício imaginativo. “Tocaria em festas como Mamba Negra e seria uma influência ainda maior”, conclui.

Ainda na rara entrevista para a M…, Lacraia diz: “Até 2010 a discriminação vai estar bem menor. Se hoje não botam um gay na novela, ela não vinga”. O que mostra o otimismo e a consciência do momento histórico e do seu papel para o movimento. 

Lacraia cumpriu uma estatística muito triste no Brasil de que travesti morre jovem em consequência das circunstâncias de transfobia, apagamento e violências de todos os tipos. 

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Mas sua história segue sendo lembrada e sua música está disponível em plataformas de streaming para que outras artistas, incluindo travestis, possam se inspirar.

Fonte: Redação Nós
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