Cuca: 'Pude levar minha vida porque o mundo do futebol e dos homens não tinha me cobrado'

Após estreia no comando do Athletico-PR, treinador lê carta, fala sobre anulação de condenação de estupro na Suiça e afirma: 'Quero e me comprometo a fazer parte da transformação'

10 mar 2024 - 23h24
(atualizado em 11/3/2024 às 11h13)
Foto: Reprodução/Redes sociais

Cuca fez sua estreia como técnico do Athletico-PR neste domingo, dia 10, em goleada por 6 a 0 sobre o Londrina pelas quartas de final do Campeonato Paranaense. Após o duelo, o treinador foi à coletiva de imprensa e leu uma carta para falar sobre a anulação de sua condenação por estupro na Suíça e se comprometer com uma mudança de mentalidade após entender o que a sociedade espera dele.

O técnico afirmou que escreveu a carta com a ajuda da mulher e da filha e se disse nervoso diante do assunto sério. Cuca explicou que leu e escutou as críticas que recebeu e entendeu sobre o que se tratavam todas elas (leia a íntegra do pronunciamento mais abaixo).

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"Eu escolhi me recolher durante muito tempo, mas consegui seguir a minha vida, enquanto uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir a vida dela sem permanecer machucada, carrega o impacto para sempre. Eu consegui seguir minha vida. O mundo do futebol e o mundo dos homens nunca tinha me cobrado nada, mas o mundo está mudando e eu acho que é para melhor", iniciou o treinador.

Cuca afirmou que se calou sobre o tema por muitos anos. "Eu enxergava os problemas, mas me calei porque a sociedade permitia que eu, como homem, me calasse. Hoje entendo que o silêncio soa como covardia. Tenho buscado ouvir mais, entender mais, aprender mais. A realidade tem de ser transformada para que o mundo seja um lugar mais seguro para as mulheres. O mundo do futebol ainda é de muito preconceito. Entendi que quando me cobram não é só sobre mim, é sobre a forma como tratamos as mulheres".

O técnico do Athletico-PR disse também que quer ser parte integrante de uma transformação. "Quero jogar luz, usar a voz que tenho para, ao mesmo tempo que me educo, educar também outros homens, principalmente os jovens que amam futebol".

Por fim, Cuca afirmou que entendeu o que a sociedade espera dele. "Eu pensei que eu estava livre da minha angústia quando solucionei meu problema com a anulação do processo e a indenização. Mas entendi que não acabou porque não dependia apenas da decisão judicial, mas que eu precisava entender o que a sociedade esperava de mim. O que vocês vão ver de mim daqui para frente não serão palavras, serão atitudes", disse.

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Cuca é inocente?

A defesa de Cuca solicitou a revisão do caso argumentando que o treinador não contou com um representante legal na época e foi julgado à revelia. O pedido de um novo julgamento foi aceito, mas o Ministério Público alegou não ser possível realizá-lo pelo fato de o crime ter prescrito. O órgão, então, sugeriu a anulação da pena e o fim do processo, o que acabou sendo acatado pela Justiça. Foi determinada, ainda, uma indenização de 13 mil francos suíços (R$ 75 mil) — atualizado para 9,5 mil francos suíços (R$ 54,8 mil) após cumprimento de despesas.

Afinal, Cuca é inocente? Apesar da extinção da sentença, não se trata de uma mudança de veredito. Isso porque o mérito do caso não foi reavaliado pela Justiça da Suíça. Assim, é errado afirmar que Cuca foi inocentado. Com a anulação de sentença e prescrição do processo, não poderá haver novo julgamento. A vítima morreu em 2002, aos 28 anos. Um dos herdeiros foi consultado, mas não quis ser parte do processo. A presidente do tribunal, então, decidiu então pela anulação do caso. Em tese, cabe recurso, mas nenhuma das partes está disposta a recorrer.

Entenda o caso 'Escândalo de Berna'

Alex Stival, o Cuca, Henrique Arlindo Etges, Eduardo Hamester e Fernando Castoldi, então atletas do Grêmio, foram detidos sob a alegação de terem tido relações sexuais com uma garota de 13 anos sem consentimento. O caso ocorreu no hotel Metrópole, em Berna, na Suíça, em 1987, ano em que o time gaúcho fez uma excursão pela Europa. De acordo com a investigação da polícia local, a garota pediu autógrafos e camisetas para os jogadores, que, então, a levaram para dentro do quarto e abusaram dela. Ela registrou queixa na polícia horas depois sob a alegação de ter sofrido violência sexual

Segundo publicou o Estadão em 7 de agosto de 1987, a versão do Grêmio, naquela época, era de que a jovem invadiu o quarto em que estava os atletas para pedir flâmulas, camisetas e autógrafos e depois saiu. No mesmo dia, o Estadão reportou que Eduardo e Henrique haviam admitido ter tido relação sexual com a garota, mas de forma consensual. Fernando e Cuca negavam qualquer participação. O advogado da vítima, porém, contestava a versão e afirmava que a menina reconheceu, sim, o então jogador do Grêmio como um dos que participaram do ato.

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Tanto Cuca quanto os outros três colegas do Grêmio permaneceram em cárcere por 30 dias. Depois desse período, retornaram para o Brasil após darem depoimento por mais de uma vez e ser encerrada a fase de instrução do processo. Cuca, Henrique e Eduardo foram condenados em 1989, portanto dois anos depois do episódio. A Justiça suíça condenou os brasileiros a 15 meses de prisão e a pagamento de US$ 8 mil. Mas eles nunca cumpriram a pena estipulada para o crime, que prescreveu em 2004. Fernando foi condenado a três meses de prisão e ao pagamento de US$ 4 mil por ser considerado cúmplice.

Cuca foi enquadrado no antigo artigo 187 do Código Penal da Suíça, que prevê prisão de até cinco anos por envolvimento em um ato sexual com uma criança menor de 16 anos. A Justiça entendeu que não houve violência por parte de Cuca e dos outros jogadores, mas sim "coerção" e "fornicação", segundo afirmou ao Estadão uma porta-voz do Tribunal Superior de Berna, responsável por dar a sentença há 34 anos.

Leia o pronunciamento na íntegra

Antes de encerrar essa coletiva, eu quero falar sobre os últimos meses da minha vida, que foram de muita reflexão, muitas conversas. Porque antes de falar eu tinha necessidade de escutar. Minha esposa e minhas filhas estão me ajudando bastante. Eu escrevi um texto com a ajuda delas, porque ainda não me sinto com conhecimento suficiente para falar sem esse respaldo sobre algo tão sério. Por elas e por todas. Não quero errar!

Tenho escutado opiniões e tenho tentado entender o meu papel. Recentemente, li uma coluna da Milly Lacombe, no UOL, em que ela dizia que isso não é sobre mim. Entendi o que ela queria dizer, mas eu quero colocar assim: hoje sei que isso não é só sobre mim!

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Escolhi me recolher durante muito tempo e mesmo assim pude seguir minha vida. Uma mulher que passa por qualquer tipo de violência não consegue seguir com a vida dela sem permanecer machucada. O impacto dura pra sempre! Eu pude levar a minha vida contornando a história porque o mundo do futebol e dos homens em que vivo não tinha me cobrado nada. Mas o mundo está mudando, acho que para melhor, e por isso estou me dando conta de que não adianta eu entender o que é ser um grande treinador, pai, avô e esposo, se eu não entender que o mundo é feito de outras coisas além do futebol, e que eu faço parte disso também.

Eu enxergava, sim, os problemas, inclusive recorrentes aqui no nosso universo do futebol e dos homens. Mas me calei porque a sociedade permite que um homem se cale. Aliás, permitia!!Agora eu entendo, mesmo sem ainda conseguir me aprofundar para falar do jeito que seria certo, eu entendo que não posso mais me recolher, ficar calado, porque silêncio soa como covardia. Venho buscando ouvir mais, aprender, compreender.

Não posso mudar o passado. Quantos de nós, homens, que agora me escutam, são capazes de olhar para o passado e rever atitudes? O mundo é um lugar muito diferente para homens e mulheres e, quando a gente enxerga isso, a gente pode até resistir, mas alguma coisa começa a mudar. E esse é o primeiro passo. Depois o sentimento é de real desejo de mudança. Só que as mudanças honestas e verdadeiras levam tempo, exigem dedicação, estudo, são dolorosas e desafiadoras.

Já entendo que a realidade tem que ser transformada para que o mundo seja um lugar seguro para as mulheres, para todos. O mundo do futebol ainda é campo de muitos preconceitos. Entendi que quando me cobram, não é só sobre mim: é sobre a forma como nós, homens - e a sociedade como um todo - trata as mulheres de maneira desigual e muitas vezes violenta.

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Eu não estou falando isso hoje como uma fala isolada, pra agradar alguém, da boca pra fora. Fosse assim já teria me manifestado antes. Eu falo isso do coração. Eu tenho me dedicado a isso, quero e me comprometo a aprender cada vez mais e fazer parte dessa transformação. Como eu vou fazer isso? Eu acredito no poder transformador da educação. Quero ajudar, quero jogar luz sobre a gravidade e a seriedade da violência contra a mulher.

Quero usar a voz que tenho para, ao mesmo tempo que me educo, educar também outros homens a falar sobre esse tema, principalmente com os jovens que amam futebol. Masculinidade, poder, sucesso repentino. Tudo isso é um desafio pra qualquer jovem. Muitos se perdem. De repente, ganham fama, dinheiro, a vida muda muito rápido. Somos levados a pensar que podemos tudo, inclusive desrespeitar as mulheres.

Acho importante que os homens que estão nesse processo de busca de entendimento como eu, fiquem perto da meninada da base, dos nossos filhos, netos, sobrinhos. Precisamos dar a eles a oportunidade de não errarem como tantos homens de muitas gerações erraram. Porque é ali que a gente consegue sensibilizar, colocar pra pensar, orientar. Todos deveriam entender o que venho aprendendo: Sucesso e dinheiro não servem pra nada se você se perder pelo caminho.

Eu pensei que estaria leve, que minha angústia acabaria com a resolução legal do processo. Não acabou! E entendi que não acabou porque ela não dependia só de uma decisão judicial, mas também de entender o que a sociedade espera de mim. Daqui em diante, o que vocês vão ver são atitudes. Podem me cobrar. Obrigado por me escutarem e boa noite.

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