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Black Friday: Cuidado para não parcelar sua saúde mental

Do ponto de vista psicológico, Black Friday explora de maneira sofisticada vieses cognitivos que todos temos. Descontos agressivos, contagens regressivas e a promessa de estoque limitado ativam respostas rápidas e emocionais

29 nov 2025 - 00h15

A Black Friday costuma ser apresentada como uma grande festa de oportunidades, quase um carnaval do consumo, mas do ponto de vista da saúde mental ela é, antes de tudo, um experimento coletivo de desregulação. Em poucas horas, concentramos estímulos intensos ao sistema de recompensa, mensagens de urgência e escassez, comparações sociais em tempo real e uma pedagogia muito clara: bons sujeitos são aqueles que aproveitam ofertas, consomem sem hesitar e transformam desejo em transação o mais rápido possível. Não se trata apenas de comprar barato, mas de ensinar, ano após ano, que felicidade, pertencimento e valor pessoal podem e devem ser atualizados na mesma velocidade com que o feed é atualizado.

Há evidências de que intervenções focadas em regulação emocional, inteligência emocional e reflexão sobre valores conseguem reduzir materialismo
Há evidências de que intervenções focadas em regulação emocional, inteligência emocional e reflexão sobre valores conseguem reduzir materialismo
Foto: Canva Fotos / Perfil Brasil

Quando se observa esse ritual à luz da psiquiatria, Black Friday deixa de ser um evento divertido e passa a ser um contexto de risco para pessoas vulneráveis a comportamentos de compra impulsiva e compulsiva. O transtorno de compra compulsiva é caracterizado por uma preocupação persistente com compras, tensão e ansiedade antes de adquirir algo, sensação de alívio ou euforia no ato e, logo depois, culpa, vergonha e prejuízos concretos, especialmente financeiros e relacionais. Estudos mostram comorbidades altas com depressão, transtornos de ansiedade e outros quadros impulsivo-compulsivos, além de associação com maior endividamento e pior qualidade de vida, o que transforma a brincadeira promocional em um gatilho poderoso para ciclos de sofrimento silencioso.

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Do ponto de vista psicológico, Black Friday explora de maneira sofisticada vieses cognitivos que todos temos. Descontos agressivos, contagens regressivas e a promessa de estoque limitado ativam respostas rápidas e emocionais, privilegiando decisões automáticas em detrimento da reflexão deliberada. A sensação de que todo mundo está aproveitando alimenta o medo de perder (FOMO) e a comparação social, especialmente em contextos de redes sociais, aumentando a probabilidade de compras impulsivas guiadas mais por ansiedade, insegurança e necessidade de pertencimento do que por necessidade real. Não é uma falha de caráter do consumidor; é um ambiente desenhado para capturar vulnerabilidades cognitivas e emocionais.

Por trás desse cenário está algo mais profundo do que uma simples estratégia de vendas: a valorização do materialismo como eixo organizador da vida psíquica. Pesquisas em psicologia demonstram de forma consistente que quanto mais centrais são os valores materialistas, ou seja, foco em dinheiro, status, aparência, acúmulo de bens, piores tendem a ser os indicadores de saúde mental: maior prevalência de sintomas depressivos e ansiosos, menor satisfação com a vida, mais conflitos e mais queixas somáticas. Quando metas extrínsecas como consumo e prestígio competem com necessidades psicológicas básicas de autonomia, competência e vínculo, a vida passa a ser organizada em torno de ter mais e então essas necessidades permanecem cronicamente frustradas, o que alimenta sentimentos de vazio e inadequação que o próprio consumo tenta anestesiar.

É aqui que a crítica filosófica ajuda a dar nome ao incômodo. A tradição da Escola de Frankfurt já denunciava a indústria cultural como um dispositivo de produção de desejo e conformismo, no qual as pessoas passam a se reconhecer e ser reconhecidas pelo que consomem, e não pelo que criam, pensam ou compartilham em termos de experiência. Bauman descreve uma sociedade de consumidores em que não apenas as mercadorias, mas também relações, identidades e até corpos são tratados como objetos de uso e descarte, e a Black Friday funciona como um ritual anual de consagração dessa lógica, uma liturgia do excesso, da substituição rápida, do sempre há algo novo que você ainda não tem e nem sabe que precisava. Byung-Chul Han, por sua vez, ao falar da sociedade do cansaço e da psicopolítica, mostra como a autoexploração, a pressão por desempenho e a comparação permanente produzem um sujeito exausto que, diante do vazio, busca no consumo um analgésico rápido para a própria sensação de fracasso. A mesma cultura que adoece pela exigência de performance oferece, assim, o consumo como paliativo e a Black Friday como seu grande sacramento anual.

Do ponto de vista clínico e social, não é difícil identificar quem mais sofre nessa engrenagem. Pesquisas apontam que impulsividade elevada, baixa autoeficácia, maior ansiedade de estado e sensação de insegurança financeira aumentam o risco de compras compulsivas, arrependimento posterior e endividamento problemático. Pessoas com transtornos de humor e ansiedade, já lidando com sentimentos de vazio, inadequação ou desesperança, podem usar a compra como estratégia de regulação emocional ("mood repair"), o que cria um ciclo conhecido: ansiedade ou tristeza levam à compra; a compra traz alívio imediato; em seguida vêm culpa, vergonha e piora da situação financeira, que retroalimentam o sofrimento emocional. Jovens hiperconectados, bombardeados por influenciadores, unboxings e marketing personalizado, são um grupo de risco particular, pois têm ao mesmo tempo maior exposição a estímulos de consumo e menor experiência para avaliar riscos de endividamento.

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Se a análise é crítica, isso não significa que estejamos condenados à passividade. Há evidências de que intervenções focadas em regulação emocional, inteligência emocional e reflexão sobre valores conseguem reduzir materialismo e comportamentos de compra compulsiva, além de melhorar indicadores de bem-estar subjetivo. Do ponto de vista da saúde mental, falar abertamente sobre dinheiro, consumo e endividamento, temas muitas vezes cercados de vergonha, é uma forma de cuidado, não apenas de educação financeira. Em psicoterapia e na clínica psiquiátrica, perguntar o que exatamente a pessoa busca quando compra (alívio, pertencimento, prova de valor, anestesia da dor) pode abrir um campo importante de simbolização e escolha. Em termos práticos, medidas simples como criar um orçamento prévio, listar necessidades reais, instituir um período de espera antes de compras não planejadas e refletir sobre os próprios valores já funcionam como pequenos atos de resistência psicológica à lógica do clique imediato. Talvez, no fim das contas, a pergunta mais saudável em uma Black Friday não seja quanto eu vou economizar, mas o que, dentro de mim, estou tentando comprar quando compro? Porque a conta mais cara, do ponto de vista da saúde mental, quase nunca aparece no extrato bancário.

*Maria Carol Pinheiro - Psiquiatra, palestrante, professora universitária e Mestre em Ciências da Saúde, atua há mais de 15 anos com atendimentos em psiquiatria e psicoterapia. Coordena a disciplina "Saúde Mental na Escola" na pós-graduação em Neurociência Aplicada à Educação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Professora na pós-graduação do Einstein de Medicina do Estilo de Vida. É autora de capítulos de livros em editoras como Artmed, Manole e Cambridge, e tem se dedicado a palestras, treinamentos e consultorias em saúde mental pelo Brasil.

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