O calor extremo pode custar diariamente ao Brasil até US$ 353 milhões em salários que deixariam de ser pagos porque o trabalho se tornará inviável nas horas mais quentes, até o fim do século (2075 a 2099). Isso, considerando o cenário mais severo de aquecimento global, no qual a temperatura média global do planeta pode subir mais de 4ºC em relação aos níveis pré-industriais. O cálculo faz parte de um estudo sobre custos econômicos das mudanças climáticas no País, publicado em novembro na revista científica Nature.
Quatro autores da pesquisa ouvidos pelo Estadão/Broadcast alertam que, sem medidas de adaptação, o calor tende a reduzir a jornada ativa de trabalho, afetar a renda de milhões de pessoas e elevar os custos de produção, reduzindo a competitividade da economia brasileira.
"O calor é invisível para a sociedade. As pessoas não o enxergam como risco real", afirma Ismael Silveira, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e um dos principais autores do estudo. "Assim, o calor não é tratado com a mesma seriedade por empresas e políticas públicas porque não deixa destruição visível, como uma enchente."
Se for considerado um cenário intermediário de aquecimento global, em que a temperatura média do planeta aumente cerca de 2,7ºC até o fim do século, segundo projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), as estimativas indicam perdas diárias de até US$ 228 milhões.
Para chegar ao cálculo, os pesquisadores multiplicaram o número de trabalhadores afetados pelo calor pelo valor do salário que deixariam de receber nas horas em que a atividade se torna inviável.
Em outras palavras, se um trabalhador perde 10% do tempo produtivo em um dia de calor extremo, considera-se que 10% do salário diário também é perdido. "Essa perda diária seria se o trabalhador realmente deixasse de trabalhar. É o salário dele que se perde", explica Leydson Galvíncio, co-autor do estudo, meteorologista e pesquisador no Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.
A pesquisa, intitulada Perdas de Produtividade e Custos Econômicos Projetados Devido ao Estresse Térmico em Cenários de Mudanças Climáticas no Brasil, avaliou a perda de renda com base no número de trabalhadores em diferentes setores, na remuneração média diária e na proporção do tempo de trabalho comprometido pelo calor. O cálculo segue a chamada abordagem do capital humano, que transforma a perda de produtividade em perda financeira ao aplicar essa proporção diretamente sobre o salário.
Foram usados salários médios de US$ 21,79 por dia na agricultura, US$ 25,27 na construção civil, US$ 34,15 na indústria, US$ 30,34 nos serviços e US$ 17,82 no trabalho informal, considerando o câmbio de R$ 5,80 por dólar.
A partir desses valores, os estudiosos estimaram a renda que deixaria de ser gerada conforme a perda de produtividade medida pelo índice WBGT, que combina temperatura, umidade e radiação solar para avaliar o estresse térmico. Galvíncio explica que esse procedimento foi refeito diversas vezes para confirmar os resultados, já que os valores parecem altos à primeira vista. Ele destaca que a equação de perdas diárias segue uma metodologia já estabelecida em outras pesquisas internacionais.
O estudo também aponta que no setor de serviços o custo econômico é o maior, seguido pelo trabalho informal, indústria, construção civil e agricultura. Com a agricultura e a construção civil podendo registrar quedas de produtividade de até 90% sob altas emissões.
Trabalhador informal é o mais afetado
Beatriz Oliveira, coautora do estudo e doutora em Saúde Pública e Meio Ambiente pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz no Piauí, ressalta que o trabalho informal tende a ser um dos mais impactados pelo calor. "A preocupação com esses casos é grande porque, sem regulamentação, há pouca autonomia para adotar medidas específicas de proteção (ao trabalhador)", reforça.
Os dados do levantamento consideram que o trabalho informal representa cerca de 40% da força de trabalho. As perdas diárias podem variar de US$ 116 milhões a US$ 160 milhões e refletir a vulnerabilidade dos trabalhadores que atuam sem proteção formal, como vendedores ambulantes, entregadores e coletores de recicláveis, que estão mais expostos a jornadas sob o sol, sem pausas adequadas, sombra ou água potável.
"Hoje, 39% dos 110 milhões trabalhadores brasileiros são informais", avalia Cleber Cremonese, também coautor do estudo e pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA). "São justamente essas pessoas, que trabalham ao ar livre e sem proteção, que tendem a sofrer os piores impactos do calor, enquanto quem atua profissionalmente em ambientes climatizados será menos afetado."
O impacto é maior no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste, onde as condições de calor extremo se tornam mais frequentes. Nessas regiões, o índice de estresse térmico conhecido como WBGT ultrapassa 34ºC em boa parte do dia, limite a partir do qual o trabalho físico ao ar livre deixa de ser viável por longos períodos diariamente.
Adaptação climática é essencial
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada grau acima de 20ºC, o rendimento do trabalhador cai entre 2% e 3%. Em 2023, estimativas do relatório Lancet Countdown mostram que o mundo perdeu 512 bilhões de horas de trabalho por calor, o equivalente a US$ 835 bilhões em renda potencial.
Para lidar com o calor intenso, agricultores estão mudando a rotina de trabalho. Em regiões como Mato Grosso, Piauí e Pará, a colheita passou a ser feita durante a noite ou nas primeiras horas da manhã, como tentativa de evitar as altas temperaturas. "Em alguns territórios, principalmente entre aqueles que trabalham com agricultura, já há uma rotatividade ou trabalhos em horários diferentes para evitar essa exposição", acrescenta Beatriz Oliveira.
Especialistas ouvidos pela reportagem recomendam políticas públicas voltadas à adaptação, como a criação de espaços frescos, pausas regulares, ajustes nos horários de trabalho e incentivo à hidratação. De acordo com os estudiosos, as medidas são essenciais para proteger a saúde dos trabalhadores e evitar que o aumento das temperaturas se transforme em uma crise produtiva nacional.
"A adaptação pode envolver mudança de turnos, incentivo à hidratação e uso roupas adequadas. O impacto sobre a saúde e a produtividade vai depender da nossa capacidade de adaptação à nova realidade", diz Ismael Silveira.
Economista e professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV EPGE), Francisco Costa ressalta que nem todos os setores podem custear os valores dessas mudanças. "Atividades que já operam com margens muito pequenas não têm como instalar ar-condicionado ou arcar com o aumento no gasto de energia. Essas mudanças podem afetar a competitividade", explica Costa. "Já em outros setores, com maior lucro, essas adaptações são viáveis. Essa demanda tende a ampliar o gap de produtividade entre empresas mais e menos estruturadas."
De acordo com ele, o Brasil já está em um ponto em que o calor começa a prejudicar o rendimento de forma não linear. "A partir do momento em que há mais dias de calor extremo, acontecem mais acidentes de trabalho. O funcionário se frustra, fica irritado e tende a errar mais."
COP-30 reforça necessidade de prevenção
O impacto do calor extremo sobre a saúde e a segurança dos trabalhadores foi um dos temas discutidos durante a pré-COP-30, em seminário realizado em Brasília no dia 8 de outubro. Especialistas e representantes do governo defenderam a adoção imediata de políticas de adaptação nos ambientes de trabalho e o fortalecimento da proteção social diante do avanço das mudanças climáticas.
Economista e professor da UFRJ, Carlos Young afirma que o enfraquecimento de políticas ambientais e de adaptação climática, como a redução do licenciamento ambiental, traz consequências diretas para as contas públicas. "O passivo ambiental se transforma inevitavelmente em fiscal", afirma Young, que também coordena o Grupo de Economia do Meio Ambiente (Gema). Para ele, quando o país deixa de investir em medidas de proteção e prevenção, acaba arcando mais adiante com os custos desses impactos. Ou seja, os prejuízos causados por desastres e mudanças climáticas recaem sobre o orçamento público, gerando crise fiscal e aumento da inflação.
"É irracional que, no momento em que precisamos de mais proteção para evitar o colapso climático, o Congresso aprove a redução do licenciamento ambiental, que existe justamente para nos proteger. Exatamente agora que o País deveria fortalecer essas medidas, está decretando por lei que precisa de menos. O resultado é o aumento dos custos tanto para o setor público quanto para o privado. A conta vai chegar e será paga com crise fiscal e inflação", argumenta Young.
Segundo dados da Fundacentro, órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), cerca de 32 milhões de trabalhadores atuam expostos ao sol em setores como agricultura e construção, com índices de calor que superam os limites de tolerância em boa parte da jornada.
A inclusão da exposição ao calor nas estratégias de prevenção de acidentes e doenças ocupacionais foi apontada como prioridade. A adaptação tecnológica e o fortalecimento do diálogo entre governo, trabalhadores e empresas foram indicados como medidas fundamentais para assegurar condições de trabalho seguras e sustentáveis diante do avanço do aquecimento global.
Além disso, especialistas presentes no seminário pré-COP-30 ressaltaram a importância do uso de instrumentos de monitoramento e da capacitação de empregadores e empregados para identificar sinais de exaustão térmica. (Reportagem de Alexandre Barreto, Jadson Luigi, Luísa Giraldo, Mariana Felicio e Vanessa Araujo)
15º Curso Estadão/Broadcast de Jornalismo Econômico Coordenação e edição: Carla Miranda e Simone Cavalcanti; Equipe: Victor Hugo Mendes, Marisa Oliveira e Eliane Damaceno