Uma troca de malas fez uma Louis Vuitton com 800 mil dólares (cerca de 3,2 milhões de reais na cotação do dia) parar no apartamento de Ivan (Antônio Fagundes) e Raquel (Regina Duarte).
Demorou para que os dois descobrissem a existência do dinheiro. Mas logo souberam quem era o dono da pequena fortuna: Marco Aurélio (Reginaldo Faria), o inescrupuloso vice-presidente da empresa aérea TCA.
Os dólares são procedentes de falcatruas do vilão e seriam remetidos ao exterior quando foram extraviados. Sem titubear, Ivan quer se apoderar da grana para ir embora do Brasil. Ele faz o possível para convencer Raquel a seguir seu plano. Mas a cozinheira sofre uma crise de consciência e, íntegra até o último fio de cabelo, não aceita ficar com a bolada, mesmo atormentada pelas dívidas de seu restaurante.
“Dinheiro sujo, ilegal”, argumenta Raquel. “Quem roubar tem cem anos de perdão”, diz Ivan. “E vira ladrão também”, retruca a batalhadora. Quase ingênua, ela diz que não saberia o que fazer com tanto dinheiro. Na sua opinião, o correto é entregar os dólares para o dono ou à polícia. “O acaso botou esse dinheiro na mão da gente”, insiste Ivan, sem disfarçar sua elástica moralidade e o desejo por uma vida de rico.
Essa trama de Vale Tudo, novela de 1988-89 reprisada atualmente no Canal Viva, está mais atual do que nunca. Em cena, Ivan não se cansa de reclamar do péssimo momento econômico do Brasil e da vontade de começar nova vida bem longe daqui. “Eu não conheço ninguém que esteja aguentando a barra de viver nesse País”, desabafa. “Aguenta quem não tem chance de se mandar.”
O executivo ambicioso que enfrentou o drama do desemprego antes de conseguir uma alta posição na TCA é cético em relação ao futuro da nação. Representa os mais de 20 mil brasileiros que deixaram o Brasil apenas em 2017. Muitos para a Flórida, nos Estados Unidos, e tantos outros para cidades de Portugal.
Enquanto isso, Raquel está convencida de que não precisa de muito para ser feliz. “Dinheiro é bom, eu gosto”, afirma a cozinheira. “Mas, antes de mais nada, eu quero minha paz de espírito.” Além de honrada, ela é tão patriota que não admite a hipótese de morar no exterior. Acredita que a situação brasileira vai melhorar e tem fé na honestidade de sua gente.
Essa é a magia da teledramaturgia: um texto escrito há 30 anos se encaixa perfeitamente no nosso atual momento. O Brasil daquela época se espelha no Brasil de hoje. Na essência dos temas abordados, Vale Tudo continua relevante ao discutir virtudes, imoralidades e dilemas éticos atemporais. Devolver ou não 800 mil dólares a um corrupto foi o impasse criado pelos autores Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères (1926-2004) para fazer o telespectador confrontar a sua própria consciência. É ficção realista.
A telenovela, gênero popular às vezes tão atacado e desprezado, se mostra hábil em retratar o que somos, como somos e a maneira como pensamos e agimos. Consegue uma façanha: estimular discussões ideológicas e filosóficas na sala de milhões de lares brasileiros, entre uma garfada e outra do jantar.
E você, devolveria?
Veja também: