“Tarde demais para explorar os mares, cedo demais para explorar o espaço” é um sentimento comum entre a maior parte da população. Porém, com tantos avanços científicos e tecnológicos, a fantasia de colonizar os cosmos está cada vez mais possível – não necessariamente próxima.
Mesmo com tantas maravilhas para ver no Universo à fora, há um lado feio que surge com socialização (ou natureza, dependendo da escola filosófica) com isso: crimes de todos os tipos.
Em Interstellar (filme de 2014, dirigido por Christopher Nolan), o personagem interpretado por Matt Damon, Dr. Mann, opta por tentar assassinar um dos protagonistas para conseguir sobreviver, após um tempo longuíssimo sozinho no espaço. Independente do que ocorre na trama, no caso da volta do personagem para a Terra, como o incidente seria investigado? Como seria para a justiça?
Essas perguntas, no entanto, ficam sem resposta. Até mesmo em conflitos individuais que foram levados ao espaço após conflitos terrestres.
Entre 2018 e 2019, uma astronauta dos Estados Unidos foi acusada de acessar o aplicativo da conta do banco de sua esposa, após ter passado por um divórcio turbulento, e ter roubado dinheiro. O problema é que isso foi feito enquanto ela estava na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).
O crime foi investigado pela Nasa e também pela Federação Internacional do Comércio, mas nenhuma lei foi aplicada de fato nessa situação, uma vez que o espaço é de todos – e consequentemente, de ninguém. Isso dificulta a penalização de um astronauta ou de uma companhia privada de sofrer uma punição na prática.
Com essas perguntas hipotéticas, utilizando somente uma narrativa de ficção, há centenas de análises do que poderia ser feito. Agora, se isso tudo ocorresse na realidade, ninguém teria respostas concretas.
“A respeito de crimes espaciais, a gente ainda não tem essa definição exatamente do que que pode ser [um crime]. Ainda estamos engatinhando para poder conversar sobre isso”, afirmou Yanna Martins, professora no Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista ao Byte. Apesar disso, há alguns tratados e acordos que foram feitos no começo da corrida espacial, durante a Guerra Fria.
Tratados atuais
A humanidade possui quatro tratados de maior relevância quando se trata de leis espaciais: o Tratado do Espaço Exterior (1967), o Acordo de Resgate de Astronautas (1968), a Convenção sobre Registro de Objetos Lançados no Espaço Exterior (1975) e Código de Conduta para Astronauta (2007).
No que se refere a crimes ocorridos no espaço sideral, o Tratado do Espaço Exterior é o mais importante. Ele foi adotado pela Organização das Nações Unidas (ONU) e seu objetivo primordial é estabelecer princípios fundamentais do direito espacial, para que o uso seja pacífico e benéfico para a humanidade.
Alguns dos pontos principais dele são a proibição do uso militar do espaço ou qualquer instalação desse tipo; liberdade de exploração e pesquisa para todos os países; e a proibição de reivindicação de soberania de qualquer corpo celeste, como a Lua e outros planetas.
Além disso, qualquer país que tenha atividades no espaço e cause algum dano com seus objetos (satélites, naves ou equivalentes), tem responsabilidade por seus próprios atos.
De acordo com a especialista em geopolítica e defesa e doutoranda em estudos estratégicos internacionais, Tatiana Garcia Delgado, a brecha principal é que o tratado não fala sobre algum tipo de armamento que possa perpassar pelo espaço, através de um míssil balístico intercontinental, por exemplo.
“Também não aborda questões sobre novos tipos de armamento, já que ele foi feito lá no início da exploração espacial, ainda durante a Guerra Fria. Os novos tipos de armamento seriam armas de energia dirigida, ou lasers, por exemplo, baseados no espaço, ou até mesmo um satélite que venha a funcionar como arma a partir do momento que ele for programado para atingir um inimigo”, explicou ao Byte.
Falta de legislação espacial
Além de confrontos diretos, uma possibilidade do que pode acontecer até mesmo antes de um homicídio no espaço é da história se repetir como na colonização das Américas, em que havia piratas.
Na visão de Hélio Jaques Rocha-Pinto, presidente da Sociedade Astronômica Brasileira e professor de astronomia no Observatório do Valongo - UFRJ, o princípio para o espaço é o mesmo que na Terra.
“Esses piratas não eram necessariamente indivíduos privados, às vezes eles eram mantidos pelos governos. Dá para pensar na possibilidade de satélites piratas que ninguém sabe de quem é, atacando outro satélite”, disse so Byte.
“Não existe legislação mundial que dê conta de algo desse tipo. Mas é uma possibilidade você atacar o projeto espacial de outro país no próprio espaço, com algum tipo de nave ou satélite que não está identificado. Isso talvez acontecesse antes de crimes mais comuns como homicídio”, eplicou.
Com a falta de uma legiislação espacial internacional que consiga, de fato, acompanhar todas as atividades que ocorrem no espaço, ter como realizar a investigação e aplicação de leis se torna confuso e complicado.
Com um aumento de atuação espacial por parte dos países, com agênciais nacionais – sem contar as empresas privadas que tendem a avançar mais – há uma preocupação maior com a segurança de missões e de objetos enviados ao espaço.
“Fica muito complicado a gente prospectar quais seriam os possíveis crimes que poderiam ocorrer no espaço, tendo em vista que o direito espacial internacional é bastante vago, é bastante passível a brechas e a novas questões a qual ele não está preparado para responder”, disse Tatiana.
A especialista completa que questões como sabotagem e pirataria, acabam tendo mais protagonismo ainda na Terra, em relação a sabotagem a computadores e roubo de propriedade intelectual.
Lixo espacial e as consequências
Outro acontecimento que dificulta a aplicação de leis e até mesmo o trabalho de astrônomos é o do lixo espacial. Com o aumento de satélites lançados ao espaço nos últimos anos, como os da Starlink, de Elon Musk, também levantou muitas questões sobre quem se responsabiliza sobre os problemas gerados com detritos espaciais.
O envolvimento das empresas privadas aumentou ainda mais essa preocupação, tendo em vista que a SpaceX lançou 60 mil nanossatélites ao espaço.
O presidente da Sociedade Astrônoma Brasileira pontua que há alguns anos, as imagens astronômicas profundas começaram a sair com muitas riscas de luz, pois os satélites passavam no campo do telescópio, que expõe a imagem durante meia hora, aproximadamente.
“Nesse meio tempo, uma quantidade enorme de satélites passou. Ele [Elon Musk] fez isso à revelia, ele colocou os satélites porque ele tinha dinheiro. Sem consultar ninguém, nem acerca do impacto que teria. Isso gerou uma preocupação enorme na comunidade da astronomia”, afirmou Rocha-Pinto.
Ainda existe a possibilidade desses detritos atingirem a Terra. De acordo com Tatiana, “existe uma certa legislação sobre possíveis detritos que venham cair em Terra que está dentro da Convenção de Responsabilidade no Espaço e também da Convenção de Registro, tendo em vista que cada ativo que vai para o espaço é registrado, ele ganha um registro de acordo com o país que enviou esse equipamento um espaçonave ou satélite”.
Colonialismo
Na visão da professora Yanna, a queustão é paradoxal quando se trata de exploração espacial.
De um lado, "à medida que a gente consegue construir telescópios espaciais melhores do que os anteriores, construir instrumentos que tenham mais sensibilidade para mapear a superfície da Terra ou mesmo de outros planetas, outros pequenos corpos do Sistema Solar, isso tudo é fantástico”, diz.
No entanto, ela pontua que outras questões devem ser levadas em consideração.
"Com que propósito nós queremos lançar esse tipo de foguete, esse tipo de missão? Para as pessoas fazerem turismo espacial? Sendo que uma das grandes consequências disso é prejudicar o próprio negócio da ciência”, ressalta.
Yanna ainda pontua que há quem trate a questão de forma leviana, sem considerar outras implicações, como o custo que lançar somente um telescópio espacial tem.
“O último que a gente lançou, que foi o James Webb, custou US$ 10 bilhões (R$ 51 bilhões na cotação atual). Então, não é algo que a gente faça assim, num estalar de dedos, algo trivial”, completou.
Para a especialista em geopolítica Tatiana, ética e exploração espacial não são duas palavras que caminham juntas.
Ela acredita que hoje em dia, a exploração de recursos espaciais, turismo no espaço e até a colonização, assim como novas tecnologias que estão possibilitando novos projetos, apesar de seus lados positivos, não há direito espacial internacional capaz de acompanhar.