Chamar um carro por aplicativo virou um gesto automático, tão cotidiano quanto pedir comida ou comprar algo pelo celular. Mas o que muita gente esquece é que, do banco do motorista, alguém também está te avaliando. Passageiros recebem notas, acumulam estrelas e podem até ser evitados por motoristas sem nunca entender exatamente o motivo.
A avaliação, que vai de uma a cinco estrelas, funciona como um termômetro silencioso de comportamento. E, segundo motoristas ouvidos pelo Estadão, pequenas atitudes, muitas vezes vistas como inofensivas por quem pede o carro, estão entre as principais razões para as notas baixas. O acúmulo delas vai sorrateiramente derrubando sua média, contabilizada pelas últimas 500 corridas: abaixo de 4,5 você pode começar a ser evitado pelos motoristas. Em casos mais graves, o que começa como incômodo vira denúncia, bloqueio e até suspensão da conta.
Ao final da reportagem, ensinamos como checar sua pontuação média e descobrir quantas "1 estrela" você acumula.
Pequenos gestos, grandes irritações
Para Rafael, motorista nas plataformas Uber e 99, uma das situações que mais frequentemente rendem avaliação negativa acontece antes mesmo de o passageiro entrar no carro: chamar o Uber ainda dentro de casa, enquanto termina de se arrumar.
Segundo ele, muita gente pede a corrida sem estar pronto para sair e, quando vê, o motorista já chegou no local, muitas vezes em ruas movimentadas, sem área de embarque. "Às vezes não tem onde parar, a pessoa fica esperando lá dentro, e a gente correndo risco de multa", explica. Em outras situações, o passageiro não se atenta ao local correto de partida e insere um endereço errado, gerando um desencontro com o motorista.
Além da espera desnecessária, o motorista pode precisar dar voltas no quarteirão ou parar em local proibido, o que gera estresse e prejuízo. Para Rafael, a regra básica é simples: o ideal é chamar o carro já pronto para sair, no ponto indicado pelo aplicativo. Não seguir isso pode não render uma bronca, mas frequentemente custa estrelas.
Mas não é só isso. A lista de comportamentos que levam à perda de pontos é longa e, para os motoristas, bastante previsível. Rafael diz que dificilmente dá uma estrela por "implicância", mas que alguns limites são claros.
Mudanças de rota sem aviso prévio, por exemplo, costumam gerar desconforto. "Às vezes a pessoa muda o caminho ou coloca uma parada no aplicativo, com a corrida já iniciada, sem falar nada. Tem motorista que já fica irritado e avalia mal", conta. Há também quem tente controlar a direção, mandando virar aqui ou ali, como se fosse o copiloto.
Outro ponto sensível é bater a porta com força. Rafael observa que, por alguma razão, isso é comum entre turistas estrangeiros, que acabam acumulando notas mais baixas sem entender exatamente o motivo. "Eles batem com uma força, parece que acham que a porta não vai fechar", diz. Com o tempo, ele se acostumou, mas reconhece que o gesto ainda pesa na avaliação.
Entre os comportamentos corriqueiros que mais incomodam está comer ou beber dentro do veículo. Rafael conta que até entende quando alguém se alimenta discretamente, mas nem sempre é o que acontece. "Tem gente que faz bagunça", resume.
Em uma das corridas, uma passageira deixou o filho comer no banco de trás. Ao ouvir um barulho de embalagem plástica no assoalho do veículo, Rafael questionou o que havia acontecido, mas a mulher garantiu que não havia caído nada. Só após ela descer que ele viu o estrago: restos de comida espalhados.
Em outra ocasião, uma passageira comeu chocolate durante a viagem. O resultado foi uma crosta melada no banco, percebida apenas quando já era tarde demais. "O problema é que não é só você que vai usar o carro. Outras pessoas entram depois", diz. Se o próximo passageiro se sujar, a responsabilidade recai sobre o motorista.
Outro ponto que pesa na relação de confiança, segundo Rafael, é a forma de pagamento. Ele relata um caso recente em que um passageiro pagou uma corrida por Pix e, depois, contestou a transação, fazendo com que o valor ficasse bloqueado por quase duas semanas para análise do banco. "A pessoa que estava no carro era tranquila, mas quem chamou a corrida, uma outra pessoa, foi mau-caráter", conta. Desde então, ele passou a evitar pagamentos fora do aplicativo e prefere usar as opções internas do próprio app. "É mais seguro. Pix pode virar dor de cabeça", resume.
Assédios na madrugada
Se durante o dia os conflitos costumam envolver pressa, atraso e mau humor, quando o sol se põe o cenário é outro. Michael Ferreira dos Santos, que trabalha principalmente da noite à madrugada, diz que o perfil do passageiro muda — e os problemas também.
Cigarro e bebida são recorrentes. "Tem gente que entra fumando ou quer beber dentro do carro. Quando você pede para não fazer, já acham que você está sendo folgado", conta. Segundo ele, isso varia conforme a categoria do serviço: na opção mais simples, como UberX, o comportamento tende a ser mais desrespeitoso.
Mas o ponto mais grave, afirma, é o assédio. "Acontece todo dia", diz. Michael relata situações em que passageiros dão em cima, fazem propostas explícitas e insistem mesmo após ouvir um "não". "É constrangedor, deixa a gente sem graça. Quando passa do limite, eu relato para a Uber ou para a 99." O medo, explica, é que o passageiro registre uma reclamação primeiro. "A palavra deles pode pesar mais", diz. Por isso, denunciar vira também uma forma de proteção.
Segundo Michael, nas áreas em que circula, o movimento noturno é intenso todos os dias, não só no final de semana. "É de segunda a segunda", diz. Ele optou pela madrugada para fugir do trânsito pesado do dia, que considera mais desgastante. Segundo o motorista, durante o dia os conflitos costumam ser outros: passageiros que já saem de casa atrasados, reclamam do trajeto, tentam controlar a direção ou descontam no motorista a frustração com o trânsito da cidade. "É um público mais estressado", resume.
'A nota diz muito quem você é'
Para Michael, a avaliação do passageiro não é um detalhe irrelevante. É um sinal. "A nota diz muito quem é você", afirma. Ele costuma aceitar corridas de usuários com nota abaixo de 4,80 mas admite que já começa desconfiado. "A chance de passar raiva é maior."
Ele lembra de um passageiro com nota 4,1 que confirmou a suspeita: mandão, mal-educado, insistia em paradas para comprar cigarro no meio do caminho. "Aí você entende por que a nota é baixa."
Para Rafael, que trabalha durante o dia, a nota de corte é menor: 4,50. Médias abaixo disso acendem alerta entre motoristas, embora reconheça exceções. "Já peguei gente com nota baixíssima que era um amor", diz. Ainda assim, quando a média cai muito, a leitura geral é de que há um padrão de comportamento problemático.
Rafael também chama atenção para um fator pouco conhecido pelos passageiros: o modo como as avaliações são feitas dentro dos aplicativos. Na Uber, explica, a nota de cinco estrelas já aparece automaticamente ao final da corrida, o que leva muitos motoristas a confirmar a avaliação no impulso, sem revisar a experiência com calma. "Às vezes você só percebe um problema depois, quando o passageiro já desceu", diz. Na 99, o processo é diferente: o motorista precisa escolher manualmente a quantidade de estrelas. Na prática, ele pode pensar melhor quantas estrelas o passageiro realmente merece.
O que dizem Uber e 99
Procuradas, Uber e 99 afirmam que o sistema de avaliação é uma ferramenta de feedback mútuo, baseada na experiência da viagem e alinhada aos códigos de conduta das plataformas. Passageiros e motoristas se avaliam de forma anônima após cada corrida, com notas de uma a cinco estrelas.
Segundo a Uber, notas consistentemente baixas podem levar à desativação da conta, tanto de usuários quanto de motoristas, além de limitar o acesso a oportunidades dentro da plataforma. A empresa reforça que comportamentos como falta de respeito, sujeira, batidas fortes de porta e atrasos frequentes impactam diretamente a avaliação.
A 99 destaca que a nota exibida é uma média das avaliações recentes e que situações de desrespeito devem ser registradas pelo app. A plataforma também oferece a função de bloqueio para evitar novos encontros entre passageiros e motoristas que tiveram experiências negativas.
Ambas reforçam a importância dos guias de comunidade, que estabelecem regras de convivência baseadas em respeito e segurança.
Como ver sua nota e quantas "1 estrela" você já recebeu
Na Uber, é possível conferir não só a nota média, mas também a distribuição das estrelas:
- Abra o app e toque em Conta.
- Vá em Configurações > Privacidade.
- Acesse a Central de Privacidade e selecione Ver resumo.
- Toque em Ver minhas avaliações.
- Você verá quantas notas de uma a cinco estrelas recebeu.
Na 99, a nota exibida também é uma média das últimas corridas, embora não seja possível identificar avaliações individuais.