“Sou a própria periferia”, diz cineasta esquecido da “capital do subúrbio carioca”
Filme sobre diretor de 76 anos recupera obra esquecida há meio século. “Estava pronto para o fim”, diz Afrânio Vidal
Documentário Dois Nilos mostra a vida e obra do cineasta da Favela do Esqueleto, em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro. Ele desistiu da sétima arte quando se preparava para dirigir a versão cinematográfica de A Mulher sem Pecado, peça teatral de Nelson Rodrigues, que autorizou o filme.
O documentário Dois Nilos, que vem sendo premiado, selecionado e exibido neste ano, chama a atenção para a vida e obra de Afrânio Vidal, cineasta negro que parou há quase meio século, após tentativa frustrada de transformar em filme a primeira peça de Nelson Rodrigues, A Mulher sem Pecado.
A obra do diretor de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, começou com curtas e, em longas-metragens, narrou o que define como “histórias urbanas envolvendo existencialismo erótico ao som de jazz”. Ele se refere a filmes como Os Noivos (1979) e O Estranho Jogo do Sexo (1983).
Vidal parou de fazer cinema quando se preparava para filmar A Mulher sem Pecado, autorizado pelo próprio Nelson Rodrigues. Tentaram substituí-lo por um diretor branco, ele desistiu de fazer cinema. “Sinceramente, aos 77 anos, me sentia pronto para o fim. Comi o pão que o diabo amassou.”
O documentário Dois Nilos reapresenta Afrânio Vidal ao público brasileiro, mostrando que uma vida de cinema não acaba assim. O trampo do nosso mano é cabeçudo, transita entre o erudito e o popular, vai do poeta Augusto dos Anjos ao cantor Ataulfo Alves.
Afrânio Vidal é de Madureira, a “capital do subúrbio carioca”
O documentário de Samuel Lobo e Rodrigo de Janeiro faz um retrato íntimo, político e poético de Afrânio Vidal. Imagina um cara nascido criado nas décadas de 50 e 60 em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, lugar de gente trabalhadora, preta, do corre.
“Meu cinema não só dialoga com a periferia, como eu sou a própria periferia. Eu sou o retrato da periferia brasileira, não sou o centro da cidade, nem a zona Sul. Eu sou de Madureira”, apresenta-se Vidal.
Especificamente, ele é da Favela do Esqueleto, de uma família de sete irmãos. “Comecei andar por Madureira muito novo, era um lugar de muita efervescência cultural. Era o tempo dos grandes coretos de Carnaval, muito rico culturalmente. Comecei me interessar pelo cinema porque ali tinha o Alfa, o Coliseu, o Beija Flor, o Cine Madureira”.
Formado em Filosofia e Comunicação Social
Entre a Favela do Esqueleto e as antigas salas de rua do Cine Pathé, na Cinelândia, e do cinema Beija-Flor, em Madureira, Afrânio Vidal foi construindo seu repertório de vida inspirado pelo cinema. Se fez o corre? Ele é formado em Filosofia e Comunicação Social.
“Depois do meu último longa, comecei meu processo psicanalítico, longo, de 27 anos, complicadíssimo. Nesse tempo eu construí uma vida, constituí minha família, coisa que é o sonho de todos. Tenho duas filhas e cinco netos, fiz muita coisa”, analisa.
O documentário Dois Nilos recupera a trajetória e a obra de Afrânio Vidal, que está como? Felizão. O filme acabou de ser exibido no BlackStar Film Festival, na Filadélfia (EUA), um dos principais do mundo dedicados ao cinema negro e indígena.
Terá exibição comercial em sessões diárias no Cine Brasília, na capital federal. Acabou de ser selecionado para a Mostra Sesc de Cinema e para o festival de curtas Kinoforum. Em sete meses, Dois Nilos passou por 18 festivais. A restauração das obras de Afrânio Vidal deve ser concluída ainda neste ano.