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Entidades querem anular concurso de memorial preto em SP

Movimentos sociais que aprovaram projeto arquitetônico agora o rejeitam e prometem judicializar a questão

2 ago 2023 - 12h08
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Primeira versão do projeto arquitetônico do Memorial dos Aflitos, que ganhou concurso. À esquerda, Capela dos Aflitos
Primeira versão do projeto arquitetônico do Memorial dos Aflitos, que ganhou concurso. À esquerda, Capela dos Aflitos
Foto: Reprodução

Organizações sociais que representam religiosos, negros e indígenas querem a anulação do concurso que escolheu o projeto arquitetônico do Memorial do Aflitos, a ser construído em homenagem à memória preta no bairro da Liberdade, em São Paulo.

O projeto do Escritório Paulistano de Arquitetura foi escolhido em abril, em concurso promovido pela Secretaria Municipal da Cultura, e ainda não tem o contrato assinado, garantindo o início das obras.

Uma assinatura nunca foi tão fundamental: as disputas reais e simbólicas travadas desde a aprovação do projeto do memorial negro – que também precisa ser indígena, como veremos – deixam dúvidas, pois até denúncia ao Ministério Público é cogitada.

Pouco renderam as tentativas de entendimento entre representantes do escritório de arquitetura autor do projeto questionado, a secretaria Municipal de Cultura, para quem está tudo certo com o concurso, e as organizações sociais, como o Instituto Tebas e a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA).

Entidades querem anular concurso

A Capela dos Aflitos e seus representantes estão entre os personagens relevantes desta história. A Capela é uma igrejinha de imenso valor histórico, deteriorada, cuja reforma deve começar em dezembro, relíquia preta em São Paulo, com quase 250 anos, vizinha do que será ou seria o futuro memorial.

Representantes da UNAMCA, organização social ligada à Capela, entre outros protagonistas sociais, acusam o projeto do Memorial dos Aflitos de colonialista, de não representar corretamente a memória negra e de desconsiderar a indígena. São sete aspectos questionados.

Eliz Alves, da UNAMCA: “Nós não reconhecemos este projeto. Vamos partir para medidas legais cabíveis”
Eliz Alves, da UNAMCA: “Nós não reconhecemos este projeto. Vamos partir para medidas legais cabíveis”
Foto: Arquivo pessoal

O Escritório Paulistano de Arquitetura, autor da proposta, se defende, se desculpa e se propõe a corrigir as falhas. Na paralela, a secretaria Municipal de Cultura está na pegada de fazer a obra, prevista para ser inaugurada no ano que vem.

Quando acontecer, a assinatura do contrato para construção não deve apaziguar os ânimos, pois, se antes eram solicitadas reformulações no projeto arquitetônico, agora pede-se a anulação do concurso que o escolheu.

A reunião da discórdia

Se a aprovação do projeto arquitetônico foi comemorada com ressalvas, a reunião entre representantes de movimentos sociais, escritório de arquitetura e a secretária municipal de Cultura, Aline Torres, ocorrida em 24 de maio, entornou o caldo.

Trechos filmados da reunião circulam na internet. A reportagem viu a gravação completa. Nos cortes e na íntegra, fica claro que ninguém se entende. Acusações, ânimos exaltados, tentativas de explicação, falas racistas e colonialistas, e o objetivo principal, discutir as alterações do projeto, não se concretizou.

Uma das questões mais delicadas é a proposta de usar a terra do antigo cemitério para a construção das paredes do Memorial dos Aflitos. Para os arquitetos, seria uma homenagem; para os negros, uma ofensa, a terra é sagrada.

Projeto previa paredes construídas com terra do local onde era o Cemitério dos Aflitos. Para entidades, é desrespeito
Projeto previa paredes construídas com terra do local onde era o Cemitério dos Aflitos. Para entidades, é desrespeito
Foto: Reprodução

A secretária municipal de cultura, Aline Torres, antes da sair da reunião, afirmou que “a gente está falando de administração pública, a gente tem uma burocracia, e a gente tem prazo para executar esse orçamento. Se eu ver que até novembro isso não andou, eu preciso colocar esse dinheiro para ser executado em outro projeto. E projeto é o que não falta”.

Ameaças de corte de verba e de morte

Em resposta à reportagem, a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Cultura explicou tecnicamente a ameaça: “Tendo em vista que o orçamento tem periodicidade anual, ou seja, não é possível acumular recursos eventualmente não executados para o próximo ano, os serviços executados cuja Nota de Empenho tenha sido emitida até 31/12, poderão ser inscritos em Restos a Pagar, para pagamento até o próximo ano, em prazo determinado anualmente pelo decreto de execução orçamentária.”

A reunião entre arquitetos, secretária de Cultura e movimentos sociais, além de não apaziguar os ânimos, gerou novos problemas. Trechos em vídeo da reunião têm cerca de 600 mil visualizações. A arquiteta Ana Ditolvo, uma das autoras do projeto arquitetônico, chegou a receber, em um só dia, 19 ameaças, inclusive de morte, em seu perfil pessoal.

Representantes do Escritório Paulistano de Arquitetura não falam sobre o projeto, fazem reuniões para decidir qual atitude tomar e aguardam a assinatura do contrato com a Secretaria Municipal de Cultura. Enquanto isso, os movimentos sociais procuram garantir suas reivindicações.

Memória indígena precisa ser contemplada

Previsto para ser construído ao lado da Capela dos Aflitos, movimentos sociais querem que o Memorial dos Aflitos, em homenagem aos negros, perpetue também a herança indígena da cidade.

No local da possível construção funcionou o Cemitério dos Aflitos, primeiro campo-santo público da capital, último refúgio de pobres, negras e negros escravizados, e indígenas. Isso entre 1775 e 1858, quando o atual bairro da Liberdade, no centro, era periferia de São Paulo.

Desnecessário ser historiador como Casé Angatu, um batalhador pela preservação da memória indígena, para entender que a capital paulista foi habitada por indígenas. Mas nada como uma prova histórica. Ela foi encontrada em 2021 pelo técnico em Museologia Lucas Inocêncio Almeida.

Em 2021, Lucas Almeida encontrou o registro do enterro de uma criança indígena no Cemitério dos Aflitos
Em 2021, Lucas Almeida encontrou o registro do enterro de uma criança indígena no Cemitério dos Aflitos
Foto: Comissão de Memória e Verdade da Escravidão da OAB-SP

Pesquisando nos Livros de Óbito da Sé, ele encontrou o registro do sepultamento de Francizca Índia, de doze anos de idade, enterrada em 28 de setembro de 1790. Ela vivia na Aldeia São José. Seu enterramento foi anotado pelo padre Gaspar Ribeiro de Matos Salys.

“Isso reafirma o Cemitério dos Aflitos como espaço da cosmologia indígena, assim como reafirma o empoderamento da identidade dessa população naquele espaço”, diz Almeida.

Por que quem aprovou o projeto agora o rejeita?

Duas entidades que querem anular o concurso que escolheu o projeto arquitetônico votaram por sua aprovação. O Instituto Tebas e a União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA) tinham representantes na comissão julgadora que escolheu a proposta do Escritório Paulistano de Arquitetura no concurso da secretaria Municipal de Cultura. Por que, agora, rejeitam a escolha?

“Caiu a ficha. A gente percebeu que o comportamento do escritório de arquitetura e da secretaria da Cultura era resultado de um concurso que não previu mecanismos que reparassem as desigualdades econômicas e raciais da sociedade. Nós estamos questionando a própria realização do concurso. Queremos que ele seja anulado e seja feito outro processo, mais inclusivo, com mais transparência, mais diversidade. Nem sabemos se o concurso é o instrumento mais adequado”.

Abílio Ferreira, do Instituto Tebas. Após concurso que escolheu projeto arquitetônico, “caiu a ficha”
Abílio Ferreira, do Instituto Tebas. Após concurso que escolheu projeto arquitetônico, “caiu a ficha”
Foto: João Leoci

A mea-culpa é de Abílio Ferreira, do Instituto Tebas. Para ele, o fato de somente três escritórios de arquitetura terem participado do concurso é um reflexo do racismo. “Acabamos chegando à conclusão de que todo o processo, desde o início, favorece a concentração. Queremos rever tudo isso”.

Advogado espera aval para agir

O advogado Shigueo Kuwahara, contratado pelos movimentos sociais que querem anular o concurso do projeto arquitetônico do Memorial dos Aflitos, está com a papelada pronta para ingressar com denúncia no Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Pode ir também ao Ministério Público.

Ainda não agiu porque o deputado estadual Paulo Reis (PT) prometeu marcar uma reunião com o prefeito para discutir o caso. Até o último dia de julho, a reunião não havia sido agendada. Paulo Reis é autor do projeto de Lei que criou o Memorial dos Aflitos.

Segundo o advogado dos movimentos sociais, houve “vícios” no concurso, com problemas no edital, deixando de atender aos princípios da publicidade e da concorrência. “Além disso, entendemos que o concurso não só não adotou medidas para evitar o racismo estrutural, mas acabou consolidando”.

Os prazos do concurso teriam sido excessivamente curtos e houve dificuldade de acesso de profissionais negras e negros. “Por isso, ao invés de ser um memorial que se torna um símbolo antirracista e contra os horrores da escravidão negra no Brasil, apenas se torna mais um obra que, no fundo, reproduz o racismo”.

Sobre a memória indígena, que não foi contemplada pela lei que criou o Memorial dos Aflitos, “deveria ser emendada para incluí-los. Mais um argumento para barrar o concurso”, diz o advogado.

ANF
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