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Tragédia hospitalar: fentanil contaminado causa quase 100 mortes e coloca regulação de saúde em xeque na Argentina

Segundo o Boletim Epidemiológico Nacional publicado em 11 de agosto, já haviam sido confirmados 67 mortes. Pouco depois, \o número subiu para 96. Irregularidades encontradas no laboratório que distribuiu as substâncias pode ter causado contaminação

28 ago 2025 - 10h55
(atualizado em 28/8/2025 às 16h27)
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A segurança dos medicamentos é um dos pilares da saúde pública. Na Argentina, essa responsabilidade cabe à Agencia Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología Médica (ANMAT), encarregada de garantir a qualidade, a eficácia e a segurança dos produtos de saúde no país. O cumprimento de normas internacionais e de protocolos de fabricação transmite a ideia de que incidentes graves e mortes associadas a medicamentos são altamente improváveis.

No entanto, quando falhas ocorrem, comprometem o sistema de saúde, abalam sua credibilidade e expõem fragilidades regulatórias até então encobertas. Foi exatamente o que aconteceu recentemente com a contaminação de lotes de fentanil — um anestésico amplamente utilizado em procedimentos hospitalares.

No dia 2 de maio de 2025, o Hospital Italiano de La Plata notificou à ANMAT um surto de infecções graves em pacientes de terapia intensiva após a administração de fentanil. As análises identificaram a presença das bactérias Klebsiella pneumoniae e Ralstonia spp em amostras clínicas. Os mesmos patógenos foram posteriormente encontrados em ampolas do medicamento produzido pela farmacêutica argentina HLB Pharma.

Desse modo, um fármaco que deveria ser estéril transformou-se em veículo de infecção, desencadeando uma crise sanitária sem precedentes. Nas semanas seguintes, novos casos surgiram em diferentes instituições. Segundo o Boletim Epidemiológico Nacional publicado em 11 de agosto, já haviam sido confirmados 67 casos. Em 16 de agosto, o número de mortes registradas chegou a 96, e segue subindo.

Alertas e disposições sanitárias

As análises realizadas pelo Instituto Malbrán__ — laboratório público de referência em saúde e microbiologia da Argentina — levaram a ANMAT a emitir alertas nacionais e determinar a suspensão imediata do uso do fentanil produzido pela HLB. A medida foi formalizada por meio da Disposición 3156/25, que proibiu a comercialização e a distribuição do medicamento em todo o território nacional.

A HLB Pharma não era uma empresa periférica no sistema de saúde argentino. Com sede em San Isidro e uma planta em Ramallo, ambos na província de Buenos Aires, produzia medicamentos injetáveis destinados a hospitais públicos e privados. A companhia pertence a Ariel García Furfaro, empresário que, em 2004, expandiu seus negócios ao adquirir a planta argentina da multinacional Aventis, formada em 1999 pela fusão da alemã Hoechst com a francesa Rhône-Poulenc. Desde então, laboratórios de capital argentino passaram a dominar a indústria farmacêutica nacional, que hoje concentra mais de 70% da produção local.

Mas o histórico da HBL Pharma já era preocupante. Desde 2022, a ANMAT vinha registrando falhas recorrentes em inspeções: problemas de esterilidade, rastreabilidade deficiente e embalagens irregulares. Essas irregularidades geraram advertências e medidas pontuais, mas nunca uma sanção estrutural.

Nos anos seguintes, a agência publicou disposições cada vez mais sérias, que mostram como o problema foi se acumulando:

27 de abril de 2022 - Após detectar falhas de qualidade, a agência reguladora ordena a retirada de lotes de solução fisiológica de cloreto de sódio e de solução de dextrose 5%.

10 de fevereiro de 2025 - Uma inspeção da ANMAT no Laboratório Ramallo (28/11 a 12/12/2024) detectou falhas críticas e maiores em qualidade, produção, recursos humanos, depósitos e controle. As irregularidades comprometem a segurança e a eficácia dos produtos.

16 de abril de 2025 - A ANMAT identificou irregularidades nos produtos da HLB Pharma, incluindo lotes de Propofol HLB sem etiqueta de rastreabilidade. Como medida, foi proibido o uso, comercialização e distribuição desses lotes em todo o país e determinado o recolhimento do mercado.

[24 de abril de 2025](https://www.argentina.gob.ar/noticias/se-prohibe-el-uso-comercializacion-y-distribucion-de-los-productos-diclofenac-hlb) - A agência ANMAT proibiu a distribuição de diclofenaco e morfina fabricados pela HLB e ordenou seu recolhimento imediato.

13 de maio de 2025 - Com o surto já em curso, a ANMAT publicou a Disposición 3156/25, proibindo o uso do fentanil HLB em todo o país e, no mesmo dia, pela Disposición 3158/25, suspendendo todas as atividades produtivas da empresa e interditando suas plantas.

Essas disposições revelam a "janela de tempo" crítica. Entre 2022 e 2025, a agência acumulou alertas e proibições parciais, mas só após dezenas de mortes decidiu interditar a empresa. O "círculo vicioso" de relatórios, advertências e recolhimentos de lotes específicos permitiu que a HLB continuasse operando até que a tragédia tornou a sua paralisação inevitável.

O que emerge daí é uma pergunta inevitável: por que a ANMAT não atuou de forma mais contundente antes? Os controles existiam e os problemas eram visíveis, mas a empresa seguia funcionando. Isso não se explica apenas por falhas de execução. Revela também um problema político, em que a agência, submetida a pressões e limitada por seu desenho institucional, não teve força para paralisar um ator já consolidado no setor.

O descompasso entre indústria e fiscalização

O caso também precisa ser entendido em um contexto mais amplo. De acordo com um informe da Câmara Industrial de Laboratórios Farmacêuticos Argentinos (CILFA), a Argentina possui a maior indústria farmacêutica de capital nacional da América Latina. Em 2022, laboratórios nacionais representavam 78% da produção, frente a 22% das multinacionais. Esse predomínio contrasta com países como o Brasil, onde a presença de empresas nacionais e multinacionais é praticamente equilibrada (49% e 51%, respectivamente).

O fortalecimento da indústria argentina reflete um processo iniciado nos anos 2000, quando companhias locais adquiriram plantas e ativos de multinacionais em retração. O país construiu uma das maiores indústrias farmacêuticas nacionais da América Latina, com mais de 300 laboratórios, celebrada como sinal de autonomia produtiva e soberania sanitária. Essa estrutura foi capaz de atender o mercado interno e ampliar a presença internacional do país. Mas a tragédia de 2025 revelou o outro lado dessa equação: a força dos capitais nacionais não foi acompanhada por mecanismos de controle suficientemente robustos. Empresas centrais do sistema de saúde acumularam advertências durante anos sem sofrer sanções proporcionais, o que ajudou a levar ao desfecho trágico.

Embora não seja a maior crise sanitária da história argentina em números absolutos — a pandemia de COVID-19 resultou em mais de 130 mil mortes —, trata-se da mais grave tragédia recente diretamente ligada à produção farmacêutica. Nunca antes tantas mortes haviam sido associadas a um medicamento fabricado no país sob autorização estatal. O caso HLB não deve ser compreendido apenas como falha de um laboratório específico, mas como expressão de uma contradição estrutural: uma indústria nacional robusta e uma agência reguladora respeitada, mas sem instrumentos de fiscalização fortalecidos na mesma medida.

A ANMAT é frequentemente apontada como uma das agências mais sólidas da América Latina e está entre as três integrantes regionais do Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano (ICH). As outras são a ANVISA (Brasil) e z COFEPRIS (link text (México). POrém, mostrou-se limitada diante de pressões políticas e econômicas. A sequência de inspeções, advertências e disposições entre 2022 e 2025 evidencia que os mecanismos de controle existiam, mas a resposta institucional não foi suficientemente firme para deter um ator central do setor. O resultado é conhecido.

Lições para o enfrentamento da resistência antimicrobiana

O episódio também expôs a face mais grave da resistência antimicrobiana (RAM), um dos maiores desafios globais à saúde pública. A contaminação do fentanil por bactérias multirresistentes — como a Klebsiella pneumoniae, capaz de inativar medicamentos carbapenêmicos, antibióticos de última linha — mostrou que falhas de produção, fiscalização e resposta aceleram a disseminação de microrganismos que causam infecções quase impossíveis de tratar. A elevada letalidade do surto na Argentina revelou que a resistência antimicrobiana (RAM) não é uma ameaça abstrata, mas um risco concreto quando a vigilância sanitária não cumpre seu papel.

As críticas dirigidas à ANMAT refletem essa percepção. A agência é acusada de ineficiência tanto na prevenção — diante de problemas já conhecidos na farmacêutica — quanto na resposta, considerada tardia. O fato de a contaminação ter sido inicialmente detectada em um hospital e depois confirmada pelo Instituto Malbrán aponta a importância da vigilância clínica e laboratorial, mas também a insuficiência da reação regulatória.

Assim, o caso HLB deixa uma lição dupla. Para preservar a confiança nos medicamentos, não basta ter capacidade produtiva nem tradição institucional. É indispensável assegurar que as agências reguladoras tenham recursos, autonomia e respaldo político para aplicar medidas duras contra empresas centrais. Diante da ameaça crescente da resistência antimicrobiana, fortalecer esses mecanismos é fundamental para evitar novas crises.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Maria Alejandra Costa recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Juliana Silva Corrêa recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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