PUBLICIDADE

Teste genético para doenças raras em bebês avança no Brasil

Exames avaliam risco de ter problemas nos próximos anos, além de detectar condições clínicas já existentes, mas ainda invisíveis

24 mar 2019 - 03h11
(atualizado às 15h46)
Compartilhar
Exibir comentários

A relações-públicas Bárbara Mazoni, de 28 anos, amamenta Rafael, de 6 meses, a cada três horas. A rotina é a mesma de qualquer bebê, a não ser por um detalhe: Rafael tem risco alto de desenvolver uma doença que inibe a liberação de glicose pelo corpo, de modo que o cuidado com sua alimentação é mais rigoroso. Quem olha para ele, gordinho e esperto, nem imagina. Bárbara só sabe porque submeteu Rafael a um teste genético logo que ele nasceu.

A adesão a testes genéticos em recém-nascidos sem sintomas cresce no Brasil. Exames desse tipo podem ser feitos nos primeiros dias de vida do bebê, com o tradicional teste do pezinho, e avaliam, em alguns casos, o risco de ele ter problemas de saúde nos próximos anos. Em outros, detectam condições de saúde já existentes, mas invisíveis a pais e médicos.

Técnicos trabalham num laboratório de genética. 26/12/2018.
Técnicos trabalham num laboratório de genética. 26/12/2018.
Foto: Reuters

Rafael nasceu no tempo certo, cheio de saúde. Mesmo assim, Bárbara optou pelo mapeamento - e o exame detectou uma alteração genética. "Deu risco de glicogenose hepática. Nunca descobriríamos se não fosse pelo teste." Rara, a glicogenose hepática pode causar hipoglicemia (baixo teor de açúcar no sangue) e afetar o desenvolvimento neurológico do bebê.

"A orientação é não desmamar na madrugada, tentar fazer com que se alimente de três em três horas." Após o resultado, a mãe levou o pequeno para fazer uma bateria de exames complementares, como de glicose e até ultrassom. "Foi melhor ter a notícia agora porque eu ficaria desesperada se ele começasse a ter manifestações clínicas e eu não soubesse o que era."

A indicação desses exames não é um consenso. Afinal, é melhor conhecer ou não os riscos de doenças em crianças que nasceram saudáveis? Se, por um lado, os resultados permitem saber as probabilidades e tomar medidas de prevenção, por outro o receio é causar ansiedade desnecessária nos casais.

"O teste do pezinho tradicional é ótimo e já salvou muita gente, mas tem limitações importantes. Hoje, no Brasil, só se faz teste para seis doenças, e um exame ampliado, que é particular, chega a 38", diz David Schlesinger, diretor do Mendelics, laboratório que lançou em 2018 o Primeiro Dia, o exame que Rafael fez. "Focamos somente nas doenças que são absolutamente tratáveis e graves. Não estamos dizendo cor de olho azul ou verde ou doença de Alzheimer quando tiver 80 anos."

O teste da Mendelics analisa 287 genes ligados a 150 doenças graves e raras, entre elas hemofilia e um tipo de câncer ocular que acomete crianças. Todas, segundo Schlesinger, podem se manifestar ainda na infância. Nas mãos dos pais, o resultado não é um diagnóstico. O exame pode indicar alto risco para determinado problema de saúde. A partir disso, os casais devem procurar especialistas para monitorar o quadro e propor medidas para prevenir ou contornar sintomas, caso eles apareçam.

Especialistas se dividem sobre testes.

Diferentemente do teste do pezinho, a amostra de DNA é coletada da bochecha do bebê. Ainda pouco conhecido no Brasil, o exame foi adotado primeiro por uma maternidade em Belo Horizonte, o Mater Dei, em setembro de 2017. Patologista clínica do Mater Dei, Flávia Cerqueira diz que foram feitos cerca de 400 exames. "Já tivemos resultados que podemos dizer que salvaram vidas." Um deles, conta, se refere a uma criança diagnosticada com a doença de Wilson, em que há acúmulo de cobre no organismo, comprometendo órgãos vitais.

Maternidades de São Paulo, como o Hospital São Luiz, também já sugerem o exame a alguns casais. "Do ponto de vista epidemiológico, são patologias raras, mas, quando você vê pelo ponto de vista individual, se esse raro for o seu filho, quanto mais cedo for o diagnóstico, mais se ganha na luta contra o tempo", diz Miriam Rika, neonatologista da unidade do São Luiz no Itaim. No hospital, o exame é indicado principalmente para bebês internados na UTI.

O Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, referência em doenças raras, fechou uma parceria com o laboratório. Lá, porém, o exame é usado em crianças que já apresentam algum sintoma. A ideia é identificar qual mutação genética está associada ao problema - e, assim, dar início ao melhor tratamento. Segundo Mara Lúcia Santos, neuropediatra da unidade, economiza-se tempo. "Pedia-se um exame para suspeita de uma doença e, se não era aquela, tinha de fazer outro."

Presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, a geneticista Temis Maria Felix diz que o exame não substitui o teste do pezinho tradicional. "Ainda não há evidência na literatura de que o (teste) molecular se sobreponha ao convencional, além dos custos serem completamente diferentes." O preço do Primeiro Dia é de R$ 1.190 - já o teste do pezinho básico é gratuito. Além disso, diz Temis, é necessário um aconselhamento genético prévio. "A pessoa tem de saber o que vai receber."

Para Armando Fonseca, presidente da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal e Erros Inatos do Metabolismo, esses exames, nem sempre conclusivos, podem ser fonte de preocupações sem necessidade. "Se faço uma varredura ampla genética, vou achar uma série de alterações que provavelmente nunca vão se manifestar na vida inteira. O que faço com essa informação? Se entrego à família, estou entregando a angústia", diz Fonseca, que também é diretor-presidente do DLE Genética Humana e Doenças Raras.

Nos EUA, adesão à pesquisa é baixa

Um mapeamento genético de recém-nascidos mais amplo é possível do ponto de vista técnico, mas não é adotado de forma sistemática em outros países. Nos EUA, a pesquisa BabySeq, feita por cientistas de dois hospitais, investiga os impactos de se aplicar o sequenciamento genético em recém-nascidos.

O teste indicaria uma ampla gama de mutações, como a que pode causar câncer de mama no futuro. Mas a adesão se mostrou baixa. Quando os pais foram abordados, 85% se mostraram interessados, mas no fim apenas 7% das famílias aderiram. Entre as causas estão o receio sobre informações reveladas e dificuldades logísticas de participar da análise, logo após o parto.

Veja também:

Cinco mudanças de hábito que podem reduzir o risco de câncer:
Estadão
Compartilhar
Publicidade
Publicidade