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Relatos da quarentena (2): 'Como feijão salgado pensando nos doces em que vão feijão'

'Minha mente continua esculpindo dragões que voam pelas ruas de Wuhan oferecendo uma ajuda que eu não tenho nem condições de prestar', escreve Caleb Guerra, estudante de Literatura que está na base aérea em Anápolis

14 fev 2020 - 10h10
(atualizado às 11h28)
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ANÁPOLIS - O Estado iniciou nesta semana a publicação de uma série de relatos escritos por Caleb Guerra, de 28 anos, estudante de Literatura que morava em Wuhan. Ele está entre os 34 brasileiros repatriados da província, área mais afetada pela epidemia de coronavírus. Guerra aceitou escrever um diário com suas impressões sobre a quarentena na Base Aérea em Anápolis, em Goiás. Este é o seu segundo texto.

"Na China, feijão é servido doce. Às vezes, até caramelizado. E tem sido impossível comer feijão salgado todos os dias sem pensar nos doces que vão feijão: feijão com sorvete de menta, por exemplo, é um clássico. Feijão no pão doce, com leite à vapor ou na gelatina de coco. Feijão no leite com chá. Se os chineses descobrirem o quão fascinante sobremesas feitas com leite condensado são, talvez em alguns anos teremos uma versão chinesa de brigadeiro, feito com feijão preto em vez de chocolate.

No livro A Mente Literária e o Esculpir de Dragões, que foi escrito no quinto século, Liu Xie diz que a maior dádiva outorgada pelo universo ao homem se torna também uma das maiores maldições de sua existência: a realidade de que, estando ele parado na beira do rio observando toda sua beleza, ainda assim a sua mente vaga involuntariamente pelos palácios da corte imperial.

Wuhan ? Better days will come again and your streets will shine one more time.

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Ele atribui toda beleza da existência humana ao fato de que o homem sempre ocupa dois lugares ao mesmo tempo, vivendo duas realidades de uma vez só, experimentando o mesmo mundo de duas formas diferentes, simultaneamente. E a essa capacidade da alma do ser humano, ele dá o nome de "a arte de Esculpir Dragões". Nossa vida se baseia no esforço do processo criativo de desenhar mentalmente suas escamas, pintar as camadas e ser fiel aos contornos na tentativa de criar algo tão majestoso e sublime. É essa percepção da realidade na mente que dá sentido e beleza ao nosso dia a dia mais natural e vulgar.

Mas enquanto esse dom concedido pelo cosmos trabalha para o bem da humanidade que cria e se desenvolve, paradoxalmente ele se torna a nossa maior sina. E é exatamente essa possibilidade que todo ser humano tem de Esculpir Dragões que me faz comer feijão salgado pensando em feijão doce. Não me leve a mal, sou muito agradecido pelo que tenho aqui. Mas a minha mente perambula.

Eu olho o pão francês servido quentinho pela manhã e me alegro. De repente minha mente me pergunta: "Cadê ovo cozido que passou a noite inteira mergulhado no chá e agora já está da cor marrom e com gosto de cravo?". Eu vejo as camadas de presunto e mortadela no prato e tento buscar inconscientemente onde está na mesa o pepino ralado, o pimentão cortado, o pãozinho cozido à vapor, o repolho frito com cebola, a sopinha doce de arroz fermentado com milho e por último aquele prato de macarrão com molho de gergelim tão famoso que o povo de Wuhan adora comer às sete da manhã...

Após o café da manhã, os médicos batem na minha porta para medir minha pressão, temperatura e fazer um questionário de perguntas sobre como estou me sentindo. Quando eles saem, a psicóloga chega. Preencho o formulário, digo que está tudo bem. Penso na senhora que mora no apartamento ao lado do meu lá em Wuhan. Será que ela tem alguém perguntando como ela amanheceu todos os dias?

Ah, o azul de Anapolis ?

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Devolvo o meu prato na cozinha e me lembro dos fins de semana tomando chá com meus amigos chineses e de como a casa ficava vazia quando eles iam embora e eu me sentia tão sozinho novamente lavando a louça suja. Penso no meu colega que acabou de perder o pai para o vírus, mas não pode nem enterrá-lo porque ele mesmo tem passado os últimos dias em uma cama de hospital infectado. Será que ele tem alguém ao lado para dar as mãos e orar junto com ele? E aquela garota americana que toca flauta tão bem e foi confirmado o diagnóstico positivo para o vírus? Acho que vou mandar uma mensagem e perguntar como está o coração dela. Será que ela vai ler? Será que vai responder?

Estar no Brasil agora é um privilégio do qual sou grato. Mas eu não esqueço do feijão doce. Enquanto os dias passam embaixo do céu limpo e azul de Anápolis, minha mente continua esculpindo dragões que voam pelas ruas de Wuhan e é incontrolável o desejo de voar junto com eles batendo de porta em porta oferecendo uma ajuda que eu não tenho nem condições de prestar. Mas fico pensando que consolo um abraço, uma oração ou um sorriso traria às pessoas do outro lado da porta? O povo de Wuhan está de coração partido, e esculpir dragões comendo feijão salgado me faz lembrar disso o tempo todo."

Estadão
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