O que o heteropessimismo revela sobre o mal-estar contemporâneo?
Na leitura psicanalítica, o termo expressa um mal-estar que Freud já anunciava em 'O Mal-Estar na Civilização': a dificuldade de conciliar o desejo individual com as exigências sociais
Apresentar o parceiro como "meu atual marido", ou brincar que o casamento é uma "prisão perpétua", tornou-se comum — e quase ninguém se surpreende. Por trás dessas ironias cotidianas, há um sentimento difuso de desencanto com as relações heterossexuais, mas não só com elas. Em 2019, o escritor e pesquisador, Asa Seresin, cunhou o termo heteropessimismo para nomear esse estado emocional que mistura frustração, constrangimento e desesperança diante do amor heterossexual. Não se trata de uma rejeição ao amor em si, mas de um ceticismo em relação à capacidade desse modelo relacional de oferecer satisfação e maturidade emocional.
O que é o heteropessimismo?
Na leitura psicanalítica, o heteropessimismo expressa um mal-estar que Freud já anunciava em 'O Mal-Estar na Civilização': a dificuldade de conciliar o desejo individual com as exigências sociais. A heterossexualidade, por séculos, apresentada como norma e destino, perdeu parte de sua força simbólica. O sujeito moderno se vê desamparado, tentando sustentar um modelo relacional que já não promete segurança nem sentido. Elisabeth Roudinesco observa que o amor romântico, antes idealizado como caminho de completude, transformou-se em um terreno instável, onde o outro é, ao mesmo tempo, desejado e temido.
No discurso social, o heteropessimismo aparece mascarado de humor. Piadas sobre "homens imaturos" ou "mulheres complicadas" funcionam como defesas contra o desamparo afetivo. Maria Homem, psicanalista brasileira, lê esse fenômeno como resultado de um descompasso histórico: enquanto as mulheres avançaram em autonomia econômica e emocional, muitos homens resistem a rever seus papéis. A igualdade conquistada, por um lado, não foi acompanhada por uma revisão simbólica do outro. Ademais, o encontro entre os sexos tornou-se, muitas vezes, um campo de desencontro.
Espaço de exposição e vulnerabilidade
As novas gerações, criadas em meio à fluidez das relações e à promessa da liberdade afetiva, parecem herdar tanto o cansaço, quanto o cinismo dos que vieram antes. O heteropessimismo, nesse contexto, funciona como uma espécie de "heterofatalismo" - outro termo usado por Seresin, uma sensação de que não há saída possível para o amor heterossexual, mas também nenhuma alternativa realmente satisfatória. É a melancolia de quem continua a buscar o amor mesmo após ter perdido a fé nele.
A psicanálise permite compreender esse desencanto não como fracasso pessoal, mas como efeito de uma mutação simbólica. Quando o amor deixa de ser um contrato de sobrevivência, como foi por séculos, ele passa a ser um espaço de exposição e vulnerabilidade. E, diante da vulnerabilidade, muitos preferem a ironia à entrega, o distanciamento à implicação. O heteropessimismo seria, então, um dos modos contemporâneos de dizer: "Eu desejo, mas tenho medo de desejar".
Convite à reinvenção
Freud afirmava que amar é inevitavelmente sofrer, pois o amor confronta o sujeito com a falta. Lacan retomou essa ideia ao dizer que "não há relação sexual" no sentido de complementaridade perfeita — sempre haverá resto, desencontro, assimetria. Talvez o heteropessimismo seja a expressão atual dessa impossibilidade estrutural: uma tentativa de lidar, de forma cínica, com a constatação de que o amor nunca será inteiramente satisfatório.
Se há algo de promissor nesse pessimismo é o convite à reinvenção. Ao reconhecer o esgotamento de um modelo relacional, abre-se espaço para novas formas de vínculo, mais horizontais, conscientes e plurais. O amor, afinal, sobrevive justamente porque insiste em se transformar. E talvez, como sugere a própria psicanálise, a saída não esteja em desistir do outro, mas em aprender a amar sem ilusões, sem esperar que o outro cure o vazio que é, em última instância, o que nos torna humanos.
Artigo escrito por Blenda Oliveira, doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É autora do livro Fazendo as pazes com a ansiedade, publicado pela Editora Nacional, que foi indicado ao Prêmio Jabuti em 2023. A especialista também palestra sobre saúde mental e autoconhecimento e vem se dedicando ao tema do envelhecimento.