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'Pessoas estão carentes em ver histórias de negros no cinema brasileiro', diz Maria Gal

Atriz foi eliminada de processo seletivo de filme por sua cor 'não ser comercial'; falta de representatividade começa na faculdade e continua no mercado audiovisual

18 set 2018 - 07h11
(atualizado às 14h08)
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Atriz baiana Maria Gal, dona da produtora de conteúdo negro e feminino Maria Produtora.
Atriz baiana Maria Gal, dona da produtora de conteúdo negro e feminino Maria Produtora.
Foto: Instagram / @mariagalreal / Estadão

O jovem negro e universitário Matheus Mendes, de 21 anos, foi um dos vencedores do mais recente Festival Internacional de Cinema Super 8mm, com a obra São Paulo e Textura, e sente na pele o racismo que, em sua visão, existe na produção de filmes no Brasil.

Ele mora na Vila Clara, periferia de São Paulo, e está no último ano de Rádio e TV na Universidade Anhembi Morumbi. "Havia apenas quatro afrodescendentes em meio aos 60 alunos da minha sala no começo da graduação. Dois deles largaram o curso por não conseguirem bolsa", relembra.

O estudante começou a perceber o reflexo dessa situação quando fez os primeiros trabalhos de filmagem em grupo. "A galera queria fazer produções muito voltadas para a classe média alta, como as baladas de alto padrão da cidade. Fora isso, os temas culturais sugeridos eram pouco acessíveis aos mais pobres. Foi quando percebi que estava sozinho em questões sociais e raciais do cinema", afirma.

A atriz negra Maria Gal, que atua na novela As Aventuras de Poliana, do SBT, alerta que a discriminação iniciada nos cursos é reforçada na forma pela qual a Ancine gerencia os editais de investimento em filmes nacionais.

Desde agosto deste ano, o Fundo Setorial da agência passou a dar notas aos diretores brasileiros, por meio de editais, de acordo com o número de obras lançadas pelas produtoras e o desempenho comercial dos filmes já estreados por elas. A pontuação serve de critério para liberação da verba de R$ 150 milhões aos projetos de longa-metragem.

A proposta leva em conta o mérito das produtoras nacionais, mas, mesmo com cotas, explicita a desigualdade racial narrada por Matheus. Dentre os 76 filmes classificados para a segunda etapa do processo de seleção, só seis são dirigidos por afrodescendentes (pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE). Assim, apenas 7,5% (R$ 11,4 milhões) dos R$ 150 milhões de fomento ao mercado audiovisual brasileiro foram aplicados em ideias de diretores negros.

Matheus Mendes durante a gravação do filme 'São Paulo e Textura', na periferia de São Paulo.
Matheus Mendes durante a gravação do filme 'São Paulo e Textura', na periferia de São Paulo.
Foto: Facebook / Matheus Mendes / Estadão

"Fazer cinema é caro. Você gasta tranquilamente R$ 150 mil para fazer um roteiro, sem falar de pesquisa e consultoria. Portanto, essa medida faz com que as produções fiquem sempre na mão da mesma maioria de pessoas, que não são negras ou que não têm acesso aos fundos de investimento audiovisual", explica Maria Gal.

A opinião da artista espelha os dados mais recentes divulgados pela Ancine: nenhum dos 142 filmes brasileiros produzidos em 2016 tiveram protagonistas negras do sexo feminino, e 97% foram dirigidos por brancos. O levantamento contrasta com a realidade, uma vez que 54% da população do País é negra e metade é mulher, segundo o IBGE.

'Minha pele não era comercial'

Para reverter esse cenário, a atriz abriu a Maria Produtora, uma empresa de audiovisual focada em criar conteúdo negro e feminino sobre a cultura do País para o cinema e a TV. O primeiro trabalho dela é a série Os Souza, que conta a história de uma família negra que enriquece e muda radicalmente o estilo de vida. Gal pretende produzir a obra em 2019 e está negociando a exibição do seriado com emissoras.

Além disso, ela está fazendo o longa-metragem Carolina, sobre a escritora negra Carolina Maria de Jesus. "A gente tem muitas histórias negras que não foram contadas e passaram batidas nos livros didáticos. Elas têm que estar nas telas, até porque o racismo não atinge só os negros, mas também os brancos pelo apagamento cultural", afirma.

A ideia de abrir uma produtora veio após a atriz sofrer um caso de racismo no processo seletivo de um filme, cujo nome ela prefere não falar. "Não fui aprovada para o trabalho porque o diretor achou que o tom da minha pele não era comercial", revela.

"Na mesma semana que isso aconteceu, fiz um teste para atuar num vídeo institucional e, incomodada, perguntei ao diretor se era possível o cliente não me aprovar por eu ser negra. Ele me respondeu que nunca contratou uma protagonista afro para esse tipo de trabalho."

'A senzala invadiu a Casa Grande'

Matheus Mendes afirma que as reclamações de artistas e cineastas negros são vistas como "vitimismo" por muitos, mas que existem muitas iniciativas positivas para reverter a segregação. Instituições como o Jamac - onde o jovem participou de um curso gratuito de cinema digital -, a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) e a É Nóis na Fita incentivam a produção de filmes com temáticas afrodescendentes e femininas.

Uma outra organização de estímulo à diversidade é a Casa Amarela Quilombo Afroguarany, um espaço cultural no centro de São Paulo, próximo à praça Roosevelt. A mansão pertenceu a uma família da elite cafeeira do século 20, que manteve negros escravizados mesmo após a escravidão. Hoje, a senzala que fica atrás da casa passou por intervenções e será ocupada para produções artísticas.

Espaço oferece salas para apresentações e produções de artistas independentes, sobretudo negros e da periferia. 
Espaço oferece salas para apresentações e produções de artistas independentes, sobretudo negros e da periferia.
Foto: Facebook / Casa Amarela Quilombo Afrogarany / Estadão

O local tem uma sala destinada às apresentações de filmes independentes, sobretudo com questões afros e indígenas, em parceria com a Videocamp, um site online e gratuito no qual produtores podem inserir suas obras. A intenção da plataforma é democratizar o acesso à cultura e à informação por meio do cinema. "Mais de metade dos nossos exibidores se declara educador ou educadora, e estão usando os filmes da ferramenta para promover reflexões em sala de aula. Quer uso mais nobre?", informa a equipe do portal.

A gestora da Casa Amarela, Wanessa Sabbath, conta que o estabelecimento já foi usado também para a apresentação de diversos cineastas, como a do artista plástico Jah EBM com o filme Pixo, que contou com a presença de diversos pixadores. Ela acredita que o espaço se apresenta como uma resistência diante das estatísticas do cinema brasileiro. "A senzala invadiu a casa grande e, hoje, é de total importância o Cinema Afro Guarany por uma questão de ativismo e representatividade", diz ela, em menção a mudança da casa, que passou de um ambiente escravocrata para disseminador de arte e cinema.

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

Estadão
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