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Coaching infantil busca ajudar crianças a se desenvolverem e superarem problemas

Com curso de formação de até R$ 5 mil e sessões acima de R$ 100, método promete mudar comportamentos que preocupam famílias e escolas; não existe consenso entre os institutos de coaching sobre o segmento

2 dez 2019 - 12h35
(atualizado em 9/12/2019 às 11h23)
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Atualizado às 11h19 do dia 9 de dezembro: após a publicação da reportagem, a equipe do Instituto Brasileiro de Coaching alterou o artigo que fez sobre coaching infantil, no qual alega que o método pode "alterar comportamentos negativos e inadequados", como "a depressão". Além disso, não informou que atualizou o texto, deixando-o com uma data retroativa que não procede com a verdadeira. Vale ressaltar que os funcionários também apagaram da publicação a assinatura do presidente da entidade, José Roberto Marques, trocando-a por "Equipe IBC". O E+ Estadão possui as provas guardadas do antes e do depois, com datas e horários.

Quem ouve falar em coaching infantil pode imaginar uma criança aprendendo a ser "produtiva", "mudar o mindset" ou "se tornar uma grande líder". Mas, embora não haja um consenso sobre essa prática nas associações do ramo, a psicóloga e criadora do método, Márcia Belmiro, afirma que não é nada disso.

O conceito foi pensado para formar adultos capazes de ajudar crianças em problemas como timidez, má alimentação, falta de rotina, indisciplina escolar e bullying. Baseado na terapia gestalt e na psicologia Cognitivo Comportamental, o curso não exige do aluno conhecimentos prévios e também serve para orientar pais a lidarem melhor com os filhos.

Quem atua nesse segmento investe em ferramentas lúdicas, brincadeiras e conversas informais com o pequenos. "O coaching infantil reflete direta e positivamente na saúde emocional de famílias, escolas e comunidades, contribuindo para o crescimento saudável da criança, para sua sustentação emocional e constituição para serem adultos autoconfiantes", afirma Márcia no site da escola de formação.

Em um dos casos mencionados por ela, Poliana, uma menina de oito anos, sofria com sobrepeso, colesterol e não gostava de comer alimentos saudáveis. Mesmo com um mês de tratamento em uma nutricionista, a garota não apresentava mudanças, até que seus pais buscaram a ajuda de uma coach.

Emocionada, a mãe Ingrid, de 31 anos, conta em um vídeo que a pequena começou a praticar esportes e emagreceu um quilo em 20 dias. Além disso, o pai Alessandro, de 30 anos, assumiu uma postura conciliadora e parou de agredir a filha verbalmente. "A gente a tratava com rigidez para obrigá-la a comer. [Tivemos] uma transformação grande em pouco tempo. Em 20 dias, ela mudou bastante, da água para o vinho. Não quero que ela passe pelo que passei. Ainda mais eu, que já fui gordinha", conta a mulher.

Assista ao depoimento:

Nada de traumas, abusos e casos psiquiátricos

A ajuda que Poliana recebeu passou por uma análise prévia. Márcia Belmiro afirma que antes de o coach aceitar dar uma consultoria para famílias com problemas envolvendo crianças, ele deve orientar os pais a procurarem um médico ou psicólogo para diagnosticar possíveis transtornos. Se houver, esse profissional não poderá seguir adiante com os atendimentos.

O mesmo vale para traumas, problemas com drogas, casos psiquiátricos, abuso moral e sexual da criança. "Coaching infantil envolve técnicas para ajudar a família em situações pontuais e difíceis de rotina. A gente não trata nem cura. Quem faz isso é o psicólogo, o pediatra infantil e o psiquiatra. Não trabalhamos contra essas áreas, mas em consonância", explica Márcia.

Ela ressalta, ainda, que a maioria dos casos que o coach infantil recebe não exige a necessidade de revisitar o passado para conhecer melhor o cliente. Segundo ela, muitas vezes basta mudanças na rotina, como costumes de higiene, alimentação e relação com irmãos.

"É necessário compreender o comportamento familiar ou escolar a ser atingido e, a partir daí, auxiliar na alteração dos hábitos e padrões de relacionamento", afirma.

Formação

As profissões citadas pela psicóloga contrastam com o método dela no tempo de formação: enquanto o curso de psicologia dura cinco anos e o de medicina — com a especialização — pode levar até uma década, o de coaching infantil, que não se trata de uma graduação, tem oito módulos online ou presenciais divididos em quatro dias.

As aulas mostram desde bases psicológicas, sociais e formas de conduzir sessões, até dicas de como ganhar dinheiro com a profissão (veja a grade curricular aqui). Ao concluir, o aluno recebe um diploma do Instituto de Coaching Infanto-juvenil e, se quiser, pode fazer estágio para ganhar um selo de coach habilitado para trabalhar na área.

"Como não podemos negar o certificado, abri a opção de estágio para manter o padrão de qualidade do atendimento", explica Márcia. Essa experiência, no entanto, é diferente do que costuma ocorrer no mercado, visto que, por ser um curso livre, não precisa atender à legislação que regulamenta o trabalho do estagiário.

Em vez de um profissional formado escrever e assinar relatórios avaliando o desempenho do aluno, como prevê a lei, os responsáveis pelas crianças assumem esse papel confirmando num documento que atingiram o objetivo. Durante esse processo, o coach pode consultar o conteúdo virtual do curso, como seminários, mentorias, livros, exercícios práticos e um grupo no WhatsApp voltado para o tema.

A formação online custa em torno de R$ 3 mil. O presencial é R$ 5 mil, e o valor das sessões depende de cada coach: Márcia aconselha que o iniciante cobre R$ 100 por sessão, enquanto os mais experientes peçam de R$ 250 a R$ 300.

Tempo de curso e respostas rápidas preocupam especialistas

A psicóloga e mestre em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo (USP), Desirée Cassado, acredita que o método de coaching infantil não é confiável à medida que busca ensinar adultos, em tão pouco tempo, a intervirem profissionalmente na vida de uma criança.

"Mesmo os processos terapêuticos muito bem pensados e elaborados podem causar danos ao paciente. O psicólogo está atento a isso e pronto para repensar sua intervenção continuamente. Me pergunto como uma formação curta pode garantir o desenvolvimento de tamanho repertório terapêutico", critica.

"Antes de se sentar diante de uma criança, o psicólogo infantil dedicou-se ao estudo do comportamento por cinco anos na faculdade e, muito provavelmente, realizou uma pós-graduação específica com duração de dois anos, fez estágios e participou de congressos e grupos de estudos. É irresponsável fazer a promessa de que qualquer um pode, num prazo curto de tempo, lidar habilidosamente com questões familiares e infantis, com metas tão ambiciosas quanto as descritas no site [do KidsCoaching]", reflete.

Já o psicanalista e orientador educacional Marcos Borba analisa que o coaching infantil pode ser uma maneira de a criança alcançar resultados imediatos em algumas situações, visto que, ao seu ver, "a atual geração é caracterizada pela busca incessante de resultados rápidos."

Por outro lado, ele acredita que esse tipo de atendimento, que desconsidera o passado da pessoa, pode levar o cliente a enxergar a história dele e as emoções com um olhar "prático e descartável". "Eventos traumáticos não trabalhados podem retornar por meio de gatilhos, levando a uma dependência emocional da pessoa para com o profissional que promete soluções rápidas", afirma.

"Às vezes, a pessoa está num caos psicológico tão grande que ela inicialmente pode encontrar algum apoio emocional [no coach], mas no médio prazo não resolveria. Por isso, o efeito positivo [do coaching] não se estenderia. Terapeuticamente, cairia numa dependência de soluções práticas que não se sustentariam", completa Borba.

Como resposta, Márcia diz que abordar o passado nem sempre é bom, podendo causar sentimento de culpa e não gerar resultados na vida da pessoa. Os dois profissionais, entretanto, ressaltam que não existe linha de pensamento "errada" ou "certa" na psicologia: tudo depende do contexto de cada indivíduo.

Também crítico ao KidsCoaching, o educador e mestrando em educação infantil e políticas públicas pela Universidade de Columbia, Caio Lo Bianco, afirma que o desenvolvimento humano demanda um processo de autocrítica longo e doloroso.

"A linguagem do coaching faz parecer que tudo é muito rápido e fácil. Segue-se a lógica de mercado, do que é mais eficiente e rápido. Isso não se aplica à formação do sujeito", critica. "Márcia Belmiro diz que quem faz o curso presencial sai pronto para atender em quatro dias. Isso é um risco gigante. Ninguém está preparado para lidar com crianças depois de quatro dias", completa.

Em defesa, Márcia alega que a formação em coaching infantil é voltada para atender "casos específicos, com técnicas específicas e objetivos específicos dentro do método", como ocorreu com a pequena Poliana. "Em quatro dias, damos condições para isso. Mas, é lógico, tem que se atualizar e continuar estudando", diz.

No último sábado, 30 de novembro, a psicóloga realizou o primeiro workshop de habilidades socioemocionais no Rio de Janeiro, voltado para coaches, professores, pedagogos, diretores, pais e mães.

Uma terra sem lei e sem consenso

Para além das críticas, o conceito de coaching infantil torna-se confuso e contraditório numa simples pesquisa no Google. Enquanto a fundadora do método diz uma coisa, associações que se autointitulam representantes do universo coach — em instâncias nacionais e internacionais — dizem outra. E discordam entre si.

Munido de jargões publicitários como "resultados assertivos" e "método poderoso", o presidente do Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), José Roberto Marques, afirma que o coaching infantil é a "melhor e mais eficaz metodologia de desenvolvimento e capacitação humana existente na atualidade". Além disso, garante que o coach pode até mesmo tirar a criança da depressão, contrariando estudos científicos da medicina e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classifica esse estado mental como uma doença.

Marques associa ainda o coaching infantil a um futuro próspero para os pequenos ao alegar que esse é um modo de promover "mudanças permanentes e levar à conquista efetiva de sonhos e objetivos, no âmbito pessoal e profissional."

Contrariando esse argumento, Desirée Cassado explica que diversos fatores podem alterar o comportamento humano ao longo da vida, como a falta de apoio familiar, as redes sociais e as cobranças do dia a dia. "Desenvolver crianças saudáveis emocionalmente sempre foi difícil. Os desafios mudam com o tempo e são constituídos de muitas variáveis", aponta.

Vale ressaltar que o IBC vende um curso chamado Professional & Self Coaching, que é voltado para dilemas do mundo adulto, mas promete garantir uma maior compreensão sobre o universo infantil. "Trata-se de um curso verdadeiramente completo, que vai te preparar para entender, de forma ainda mais aprofundada, como o mundo das crianças funciona", informa Marques no site, convidando pais, avós, professores, pedagogos, pediatras e babás a participarem.

Assista ao vídeo introdutório do curso:

Enquanto Marques não poupa elogios, o presidente da Sociedade Latino Americana de Coaching (Slacoaching), Sulivan França, cuja instituição, em tese, deveria nortear o pensamento de entidades brasileiras, discorda do colega e repudia o coaching infantil. "É um grande equívoco, porque é durante a infância que a personalidade se forma. Até a vida adulta, a personalidade ainda vai sofrer severas alterações", acredita.

Márcia Belmiro, que dirige a Instituição de Coaching Infanto-juvenil, alega que nunca leu e sequer tem contato com essas duas entidades. Ela diz também, em informação confirmada pelo E+, que não existe outro curso de formação em coaching infantil além do dela. "Até agora, não conheço nenhum outro concorrente. Fora isso, meu método é multidisciplinar, envolvendo uma grande quantidade de ciências. A única ferramenta usada que não é ciência é o coaching", pontua.

Vale ressaltar que a rede internacional de ensino Fastrackids, fundada nos Estados Unidos por um educador especializado em treinamento de empresários, atua no Brasil e, embora seja diferente da ideia criada por Márcia, ganhou o apelido de "coaching infantil" por treinar crianças para o mercado de trabalho desde cedo.

Regulamentação

Parte dessa confusão no conceito de coaching infantil se deve à falta de regulamentação, uma vez que não há órgãos centralizados e oficiais (como conselhos regionais e federal) para fiscalizar, padronizar diretrizes, organizar dados sobre a área e orientar os profissionais do ofício.

Hoje, o Brasil conta com mais de uma instituição que passa a ideia de referência e representação nacional. Sem descrever a diferença entre elas, todas têm nomes parecidos que querem dizer a mesma coisa: Associação Brasileira de Profissionais de Coaching, Instituto Brasileiro de Coaching, Sociedade Brasileira de Coaching, Núcleo Brasileiro de Coaching e Sociedade Brasileira de Coaching e Inteligência Emocional.

Logos de algumas instituições de coaching com nomes parecidos.
Logos de algumas instituições de coaching com nomes parecidos.
Foto: Reprodução / Estadão

Sem citar nomes, Márcia Belmiro, que atua como coach há mais de dez anos, explica que há escolas, vistas como boas, formando maus profissionais. "Tem gente que sai por aí dizendo que é coach sendo irresponsável, maculando a imagem dos bons. Regulamentar é uma forma de tirar os imprudentes do mercado e, assim, resolver essa situação", afirma ela.

Coaching pode virar crime

Mas nem todos pensam como Márcia. Tramita na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal uma proposta legislativa de criminalização do coaching, sugerida pelo jovem sergipano William Menezes, de 18 anos. A iniciativa teve mais de 24 mil votos públicos a favor e, se aprovada, pode virar lei.

Na última reunião sobre o caso, a relatoria recebeu oito representantes de entidades de coaching, e um deles apresentou uma ideia legislativa em defesa da regulamentação da profissão. Ela tem, até o momento desta publicação, pouco mais de cinco mil votos, necessitando de pelo menos 20 mil para tramitar no Senado.

Diante disso, Márcia diz não se preocupar caso sua profissão vire crime e já estuda a possibilidade de alterar a nomenclatura KidsCoaching para evitar visões equivocadas sobre seu método. "Se isso acontecer, nós [do coaching infantil] vamos nos afastar cada vez mais da nomenclatura coaching. Quero continuar transformando as escolas e reconectando as famílias que estão sofrendo. Nisso, ninguém vai me parar."

*Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

Estadão
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