“Adolescência”: por que a série se tornou um fenômeno de audiência?
Além da questão técnica, a série aborda questões contemporâneas cruciais, como a influência das redes sociais na vida dos adolescentes
Lançada em 13 de março, a minissérie britânica “Adolescência” rapidamente se tornou um fenômeno na Netflix, acumulando mais de 66 milhões de visualizações nos primeiros 12 dias e consolidando-se como a maior audiência na história da plataforma. Mas o que está por trás desse sucesso?
Narrativa Impactante
Com apenas quatro episódios, “Adolescência” apresenta a história de Jamie Miller, interpretado pelo estreante Owen Cooper, um garoto de 13 anos acusado do assassinato de sua colega de escola, Katie Leonard, papel de Emília Holliday. Parte do impacto está em sua abordagem técnica ousada: cada episódio de mais de uma hora é filmado em plano-sequência, sem cortes, proporcionando uma experiência imersiva e intensa ao espectador. É difícil resistir à tentação de não “maratonar” a série em uma única tarde.
Temáticas Relevantes e Discussões Sociais
Além da questão técnica, a série aborda questões contemporâneas cruciais, como a influência das redes sociais na vida dos adolescentes, a construção da autoestima e da sexualidade do jovem contemporâneo, e as problemáticas da misoginia e da masculinidade tóxica, amplificadas pelas redes sociais. Jamie é retratado como um jovem lutando com sua baixa autoestima e sentimentos de inadequação, especialmente em relação às expectativas sociais e paternas.
A trama também explora a cultura “incel” (celibatários involuntários), destacando como comunidades online podem impactar negativamente a percepção dos jovens sobre relacionamentos e identidade. Esses temas têm gerado debates importantes no Reino Unido, com figuras públicas sugerindo exibições em escolas para fomentar discussões sobre misoginia e violência.
Recepção da Crítica e Impacto Cultural
“Adolescência” recebeu aclamação crítica, alcançando 98% de aprovação no Rotten Tomatoes. A série não apenas quebrou recordes de audiência, mas também provocou reflexões e discussões sobre os desafios e complexidades enfrentados pelos adolescentes na era digital.
Ela nos faz pensar na falha de comunicação entre pais e filhos, em como a escola pode estar distante do universo existencial e emocional dos jovens, e ainda, de como as transformações sociais alcançadas pelas gerações anteriores não estão conseguindo dialogar adequadamente com os mais jovens, sobretudo com os garotos.
Várias camadas de discussão. Vale a pena pensar em alguns dos muitos temas abordados na série:
1. A Construção da masculinidade e a pressão social
Jamie é um jovem que se sente deslocado em relação ao modelo tradicional de masculinidade. Ele não se destaca nos esportes, não se considera atraente nem particularmente inteligente, e acredita que não corresponde às expectativas do pai.
A série mostra como os meninos têm tido dificuldade em lidar com as mudanças do papel das mulheres na sociedade. Para eles, as garotas contemporâneas são mais exigentes e seguras de si, o que potencializa sua sensação de exclusão.
A cultura dos “incels” (celibatários involuntários) é abordada também, ilustrando como alguns jovens internalizam a ideia de que apenas uma minoria masculina vai atrair o interesse feminino, reforçando frustrações, exclusões e ressentimentos.
2. A exposição nas redes
A série aborda o vazamento de imagens íntimas de Katie, uma menina considerada popular na escola, por quem Jamie sente atração.
Ele interpreta esse acontecimento como uma possível chance de aproximação, acreditando que a vulnerabilidade momentânea da garota a tornaria mais acessível, mas se engana. Ela não muda sua opinião em relação a ele.
A evasão de privacidade e a exposição não consentida nas redes sociais paira sobre essa geração de maneira perigosa.
3. A Baixa tolerância à frustração
A série destaca como muitos adolescentes têm dificuldades em lidar com o “não” e com situações que fogem do seu controle.
Jamie, que já se sentia excluído, ao perceber que a tentativa de se aproximar da garota fracassa, tem sua frustração alcançando o ápice.
O garoto não consegue processar a rejeição de maneira saudável e acaba recorrendo à violência, um desfecho que a série constrói de forma intensa e perturbadora.
4. A falta de diálogo entre gerações
“Adolescência” também expõe a dificuldade dos jovens em se comunicar com os adultos ao seu redor.
Pais e professores não conseguem compreender o que se passa na vida emocional desses adolescentes e estão a milha de distância de entender os códigos e sinais que circulam pelas redes sociais. Os jovens estão, muitas vezes, sozinhos nessa aventura.
Apesar de hiper conectados, muitos vivem em uma solidão profunda, sem apoio emocional adequado e aprisionados em seu sofrimento. Embora os adolescentes de hoje estejam mais protegidos dos perigos físicos das ruas, estão cada vez mais vulneráveis aos riscos invisíveis trazidos pelas telas.
Em resumo, com uma abordagem autêntica e provocadora, “Adolescência “se consolida como um dos maiores sucessos do streaming não apenas por sua qualidade técnica, mas porque consegue capturar com precisão angústias e desafios da juventude atual e de quem se relaciona com ela.
O impacto da série vai além do entretenimento: ela gera discussões, provoca incômodo e lança luz sobre temas urgentes, tornando-se uma peça importante para compreender as complexidades da adolescência no mundo atual.
Mas, cuidado, não é para sair por aí, desesperado, acreditando que você pode estar criando um monstro em sua casa. Jamie é uma exceção. Na maior parte das vezes, diálogo, educação digital, fundamentos de respeito e diversidade, proximidade afetiva e uma atenção permanente e cuidadosa podem ser antídotos importantes ao que se passa de forma oculta nas redes. Que tal poder falar mais sobre o que aflige e pedir ajuda quando se perceber qualquer tema preocupante no mundo, digital ou não? Se você pai ou mãe ainda não viu, eu recomendo!
Jairo Bouer é médico psiquiatra e escreve semanalmente no Terra.