A maternidade é feita de camadas, e nem todas são visíveis
Entre o ideal e o real, muitas mulheres se perdem e quando a cobrança se instala, a maternidade vira um campo silencioso de autoexigência
Desde cedo, somos cercadas por imagens idealizadas da maternidade. Bonecas no colo, sorrisos plenos, frases prontas sobre amor incondicional. Com o tempo, a ideia de que ser mãe é algo plenamente gratificante, vai se moldando como verdade. Contudo, a vivência diária é bem mais complexa do que o imaginário coletivo costuma mostrar.
Culturalmente, esse papel é tratado como o ápice do amor. E pode ser. Mas também pode ser um ponto de ruptura. A mulher que se torna mãe não deixa de existir, mas por algum tempo desaparece, soterrada por demandas, comparações, comentários gratuitos e expectativas irreais.
Cobranças da sociedade
Quando a mulher passou por tratamentos de fertilidade, a cobrança costuma ser ainda mais cruel. Há uma narrativa implícita de que, por ter lutado tanto para engravidar, ela não teria o direito de reclamar. "Você queria tanto esse bebê! Agora aguenta!". E, muitas vezes, essa cobrança não vem só de fora.
Mas quando o bebê chega, ou até durante a gestação, instaura-se um abismo entre expectativa e realidade. Isso pode gerar dor, solidão e culpa, principalmente porque muitas não se sentem autorizadas a falar sobre isso.
O peso invisível da idealização
A cobrança por "dar conta de tudo" é constante. Espera-se que a mãe saiba sempre o que fazer e que ame cada segundo da experiência: mesmo sem dormir, sem tempo para si, sem rede de apoio. E quando ela não se sente feliz o tempo todo, ou deseja estar em outro lugar, se questiona: "Será que sou uma boa mãe?"
Isso não é sinal de fracasso, mas de adaptação a uma nova identidade. A idealização da maternidade, muitas vezes reforçada pelas redes sociais e padrões inatingíveis, sufoca a experiência real. A ambivalência, o cansaço e as perdas que acompanham os ganhos, seguem sendo tratados como tabu, mesmo fazendo parte de uma experiência que pode ser tão maravilhosa quanto esgotante.
A armadilha da mãe perfeita
"A boa mãe" é aquela que não reclama, que sabe o que fazer, que sorri sempre. Afinal, a maternidade é a melhor coisa do mundo, certo? Entretanto, esse é um conceito social. Está nas redes, nas perguntas indiscretas, nas dicas não solicitadas. Está na romantização do cansaço como prova de amor. E, principalmente, no julgamento que recai sobre quem ousa mostrar que ser mãe, às vezes, é uma experiência ambígua.
Porque é. A maternidade real é feita de ambivalências. Você pode amar e querer fugir. Pode agradecer e chorar. Pode olhar para o seu filho com ternura e, minutos depois, desejar estar sozinha. Também pode ser a fase mais bonita da vida, e, igualmente, a mais caótica.
O silêncio como estratégia de sobrevivência
Poucas mães admitem que estão à beira do colapso. Não por falta de coragem, mas porque sabem que, ao dizerem que estão cansadas, correm o risco de ouvir que "isso é normal" ou que "um dia você vai sentir falta". O que poderia ser acolhimento se transforma em invalidação, e nem sempre vinda de fora do universo materno. Outras mães, também atravessadas por expectativas irreais, acabam, sem perceber, reforçando métricas de perfeição. E nesse ciclo de comparações, silenciar a própria dor se torna uma forma de defesa.
Mas esse silêncio tem um custo: a saúde mental. Estudos recentes indicam aumento expressivo nos índices de ansiedade, estresse e depressão maternos. E a origem disso não está apenas nos hormônios ou nas exigências externas, mas na solidão emocional, na sobrecarga invisível e na ausência de espaços para demonstrar vulnerabilidade, inclusive entre mães.
E o que fazer com isso tudo?
Aceitar que a maternidade perfeita não existe já é um alívio. Então:
- Permita-se sentir: validar suas emoções é o primeiro passo para não se perder de si mesma. Você pode amar e se sentir exausta. Isso é humano;
- Converse com outras mães reais: ouvir relatos sinceros ajuda a reduzir a culpa e o isolamento. Evite comparações;
- Busque apoio: não espere chegar ao limite. A psicoterapia pode ser um espaço seguro para se reconectar com a maternidade, e consigo mesma;
- Redefina o que é ser "boa mãe": talvez ser uma boa mãe seja, justamente, ser uma mãe real. Com dúvidas, falhas e aprendizado.
Lembre-se: você ainda existe além da maternidade. Uma mãe que reconhece suas vulnerabilidades, é uma mãe mais inteira.
Sobre a autora
Thalyta Laguna é psicóloga perinatal, escritora e pesquisadora na área da saúde reprodutiva. Graduada em Psicologia, com especializações em Reprodução Humana Assistida, Avaliação Psicológica em contextos de saúde e hospitalares, é também mestranda em Ciências da Saúde - Ginecologia e Obstetrícia. Possui graduação anterior em Letras, formação que amplia sua sensibilidade com as palavras e fortalece a escrita como instrumento de escuta, cuidado e reflexão. Muito Além do Positivo é seu livro de estreia e inaugura a trilogia "Muito Além", uma série que mergulha nas camadas entre a idealização e a realidade da maternidade, revelando as nuances e os desafios emocionais que muitas mulheres enfrentam em silêncio. Instagram: @thalytalaguna
*Texto escrito em parceria com Thalyta Laguna