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Depoimento: a luta do povo Xavante pela preservação do Rio das Mortes, no cerrado de Mato Grosso

"Desde o contato com o homem branco, muitas terras nos foram tomadas. O agronegócio gerou desmatamento, e transformou nososs hábitos alimentares, com a chegada do arroz mecanizado e dos produtos industrializados. Com isso vieram doenças silenciosas"

15 set 2025 - 08h05
(atualizado em 15/9/2025 às 17h35)
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Mara Barreto Sinhosewawe Xavante, autora do artigo, durante manifestação pela preservação das terras de seu povo.
Mara Barreto Sinhosewawe Xavante, autora do artigo, durante manifestação pela preservação das terras de seu povo.
Foto: Arquivo pessoal / The Conversation

O rio das Mortes, no Mato Grosso, originalmente é chamado pelo povo Xavante de rio Owawê, que em nossa língua materna significa rio grande. Agora, oito décadas depois do contato forçado com os warazu (pessoas não indígenas), voltamos a lutar pela preservação e pela sustentabilidade desse rio, entre os mais limpos do mundo.

Este rio nasce na Serra de São Vicente, percorre 1.200 quilômetros e deságua no rio Araguaia, banhando municípios como Campo Verde, Primavera do Leste, Nova Xavantina e São Félix do Araguaia. Quase 40% de sua extensão está em nossos territórios indígenas Xavante e Bororo, onde a entrada só é permitida com autorização da Funai e do Ibama. Não deve ser confundido com rio que leva o mesmo nome em Minas Gerais, afluente do Rio Grande.

O contato forçado aconteceu entre 1949 e 1950, liderado pelo sertanista Francisco Meirelles, ao comando do presidente Getúlio Vargas, com apoio do Serviço de Proteção ao Índio e de Marechal Rondon. Denominado Marcha para o Oeste, era um projeto de ocupação da nossa região no país, como forma de garantir a soberania nacional depois da Segunda Guerra Mundial. Foi nessa época que os colonizadores renomearam o Owawê como rio das Mortes. Às suas margens, aconteceram batalhas sangrentas com bandeirantes e garimpeiros por disputa territorial e contra a mineração.

O rio, que para nós é sagrado e um ser vivo com os mesmos direitos de uma pessoa, tornou-se também atrativo turístico da região pela pesca esportiva. As cheias ocorrem entre dezembro e maio, e a estiagem máxima nos meses de setembro e outubro. Mas hoje ele está ameaçado pela proposta de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas ao longo do seu curso. O governo estadual apoia os empreendimentos para garantir energia ao agronegócio, ignorando os impactos permanentes e diretos para os povos indígenas e para toda a população que já enfrenta temperaturas extremas. Em Cuiabá, o calor chega a 50 graus Celsius.

Falta de medidas de proteção contra queimadas continua ameaçando o Cerrado

Desde o contato, muitas terras nos foram tomadas e hoje vivemos em nove territórios: Pimentel Barbosa, São Marcos, Areões, Parabubure, Maraiwatsede, Marechal Rondon, Chão Preto, Sangradouro e Ubawawe. O avanço do agronegócio trouxe não só a perda de terras e o desmatamento para a região, mas também transformações alimentares com a chegada do arroz mecanizado e dos produtos industrializados. Com isso vieram doenças silenciosas: o diabetes, a obesidade e os problemas cardíacos atingem 62% da nossa população adulta. Nossa mortalidade infantil é cinco vezes maior que a média nacional. Crianças e anciãos morrem precocemente. Em sinal de luto, raspamos os cabelos com frequência.

Além da perda de território e da doença, vivemos a falta de infraestrutura básica. Muitas aldeias não têm energia elétrica, saneamento ou água potável. Na aldeia Wederã, nesta época de seca e de queimadas, estamos agora há mais de um mês bebendo água de um córrego que é usado pelos animais. A maioria está doente, com diarreia. Em 2023 e 2024, o fogo devastou o Cerrado por meses, destruindo plantações, fauna e flora, e chegou às nossas casas. Sem apoio do governo, combatemos as chamas com garrafas PET de água. O governador chegou a nos acusar de sermos responsáveis pelas queimadas, mas dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que 95% dos focos no Pantanal vieram de áreas privadas.

Essa realidade não é só nossa. Povos indígenas em todo o país enfrentam as mesmas ameaças. O que nos revolta é saber que Mato Grosso, que concentra Cerrado, Pantanal e Amazônia, é chamado de berço das águas, mas nós não usufruímos dessa riqueza. Ainda dividiram o Owawê em alto, médio e baixo curso para facilitar a exploração, mas para nós o rio é um só.

Em julho de 2024, foi ampliado o Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Rio das Mortes. Em 2025, fui eleita para ocupar uma cadeira nesse comitê, representando a aldeia Wederã e a Aliança dos Povos do Roncador. Sou a primeira mulher Xavante a participar desse organismo, ao lado do cacique Paulo Cipassé Xavante, professor e gestor ambiental, como suplente. É uma grande honra e uma responsabilidade, porque levamos a voz da nossa etnia, a maior de Mato Grosso, e também a voz do rio.

Lei garante consulta prévia, mas o direito é ignorado

Nosso desafio é fazer com que essa voz seja ouvida. A Constituição garante a consulta prévia sobre empreendimentos próximos às terras indígenas, mas isso tem sido feito apenas para validar projetos já decididos. No entanto, o direito à consulta prévia é um direito dos povos indígenas previsto na Convenção nº 169 da OIT, que foi internalizada no direito brasileiro, e nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. A consulta não é limitada por distância, mas sim pela necessidade de garantir que os povos indígenas sejam consultados em medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los diretamente.

No contexto geopolítico atual, a pressão do agronegócio aumenta. A cidade de Sorriso, em Mato Grosso, lidera a produção de soja e o estado se tornou grande exportador de carne para a China e o Vietnã. Para atender essa demanda, a bancada ruralista apresentou um projeto de lei para retirar o Mato Grosso da Amazônia Legal.. Se o projeto for aprovado, a exigência de preservação cairia de 35% para 20%, facilitando ainda mais a conversão de áreas nativas em lavouras. De 1985 a 2024, o Cerrado teve 40,5 milhões de hectares de vegetação nativa suprimidos. . Na atualidade, o Código Florestal determina que devem ser mantidas reservas legais nas propriedades na proporção de 20% das propriedades localizadas no Cerrado e 35% daquelas situadas na Amazônia Legal cuja vegetação seja de Cerrado. E no mínimo 80% de propriedades na Amazônia Legal cuja vegetação seja de Floresta Amazônica.

Se o Cerrado morrer, os outros biomas estão em grande perigo de morrer também. Situado no coração do Brasil, o bioma é conhecido como o berço das águas por causa das numerosas nascentes e áreas de recarga hídrica que alimentam as principais bacias hidrográficas do país e sul-americanas. Grande parte da riqueza desse bioma está protegida em terras indigenas - cerca 8,3 milhões de hectares, que preservamos à custa de nossas vidas. Em troca, muitas vezes sofremos racismo. Quando saímos das aldeias para estudar ou trabalhar, somos questionados: "por que vocês estão aqui? o que vieram fazer na cidade?". Somos vigiados e tratados com desconfiança em lojas e mercados. Isso é fruto da falta de políticas públicas educativas e do esquecimento de que nós já estávamos aqui muito antes da chegada dos colonizadores.

Nossos ancestrais lutaram para garantir a sobrevivência e o território. Ontem foram eles, hoje somos nós e amanhã serão nossos filhos, netos e bisnetos. O rio Owawê é nossa vida e nossa alma. Na cosmologia ancestral, preservada e transmitida entre gerações de Xavantes, nosso povo é dividido em dois clãs: os Poreza'onö (girinos) e os Owawê. Fazemos parte do rio e de quem vive nele. E ele faz parte de nós. Defender o rio é defender a existência do povo Xavante e a preservação dos biomas que sustentam o Brasil desde muito antes da chegada dos colonizadores europeus.

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Mara Sinhosewawe Xavante é integrante do Comitê Bacia Hidrográfica do Alto Rio das Mortes, no Mato Grosso, e vice-presidente da Associação Aliança dos Povos do Roncador.

O líder indígena e ex-cacique Cipassé Xavante fez parte do primeiro grupo de jovens indígenas escolhido pelo grande chefe Apoe (seu avô) para estudar nas cidades com o objetivo de aprender os costumes e a língua portuguesa dos não indígenas. Todos seriam caciques futuramente. Ainda que os Xavante não contem a passagem do tempo, Cipassé estima que tem 57 anos.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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