PUBLICIDADE

Parabólica

Recorde de Lewis Hamilton é fruto da sociedade do excesso

Número de GPs disputados e concentração de poder faz os recordes da Fórmula 1 perderem a referência histórica. Compare os recordistas da F1

12 out 2020 - 06h00
Compartilhar
Exibir comentários
Lewis Hamilton precisou de 261 corridas para igualar o recorde de vitórias de Michael Schumacher (91).
Lewis Hamilton precisou de 261 corridas para igualar o recorde de vitórias de Michael Schumacher (91).
Foto: Mercedes-AMG / Divulgação

Lewis Hamilton precisou de 261 corridas para igualar o recorde de vitórias de Michael Schumacher (91). Schumacher precisou de 157 corridas para igualar o recorde de vitórias de Alain Prost (51). Prost precisou de 108 corridas para igualar o recorde de Jackie Stewart (27). Stewart precisou de 91 corridas para igualar o recorde Jim Clark (25). Clark precisou de 71 corridas para igualar o recorde de Juan Manuel Fangio (24). Fangio precisou de 28 corridas para igualar o recorde de Alberto Ascari (13). Ascari disputou apenas 25 provas na Fórmula 1 para ser o primeiro recordista de vitórias a ser igualado ou superado.

É cada vez maior o número de corridas disputadas na Fórmula 1. No mesmo GP em que Hamilton igualou a marca de Schumacher, Kimi Haikkonen quebrou o recorde de corridas disputadas: 324, uma a mais do que Rubens Barrichello. Esses números são consequência da sociedade do excesso, um tempo em que nada é suficiente, nada é o bastante. Por causa disso, é quase impossível dizer que o feito de Lewis Hamilton é mais importante do que o de Ascari, Fangio, Clark, Stewart, Prost ou Schumacher. As referências foram perdidas por uma sociedade que acelera o tempo cada vez mais.

Lewis Carl Davidson Hamilton, herói da Fórmula 1, ativista da causa antirracista, talvez já não faça mais das vitórias em Grandes Prêmios o seu ponto de chegada, mas sim um atalho para marcar sua identidade.
Lewis Carl Davidson Hamilton, herói da Fórmula 1, ativista da causa antirracista, talvez já não faça mais das vitórias em Grandes Prêmios o seu ponto de chegada, mas sim um atalho para marcar sua identidade.
Foto: Mercedes-AMG / Divulgação

Alguns podem menosprezar o recorde de Schumacher e Hamilton sob a argumentação de que ambos foram favorecidos pela ampla supremacia da Ferrari e da Mercedes, cada uma em seu tempo. É um argumento válido, porém raso. Pilotos vencedores sempre estiveram aliados a carros vencedores, quando se trata de uma hegemonia de longo prazo. A conquista de Hamilton, portanto, deve ser colocada dentro de uma perspectiva história, na qual a Fórmula 1 é apenas um componente da sociedade – e não um mundo à parte. Lewis Hamilton, o maior piloto do momento, é único, sim, mas também é fruto do excesso de corridas e do paradigma mercantilista da F1.

Antes, a vitória na Fórmula 1 era o ponto final, era a bandeirada de chegada para qualquer equipe. Hoje, não. A F1, como outros esportes, é apenas um caminho para algo “maior” na estratégia comercial de uma Mercedes, uma Ferrari, uma Red Bull ou uma Renault. O excesso de vitórias de Hamilton (assim como de Schumacher) não cansa os vencedores, pois eles vivem sob a lógica de que sempre é possível ganhar ainda mais do que já ganharam. Ao vencer sua 91ª vitória na Fórmula 1, Lewis foi informado pelo rádio de que havia perdido a melhor volta da prova para Max Verstappen. Lewis não deixou para lá. Não! Ele imediatamente deixou baixar o espírito da busca obsessiva pela vitória e convidou a equipe a “trabalhar mais”.

Hamilton e a Mercedes estão mergulhados num mundo em que nunca é possível ser feliz, porque sempre é possível ser “mais” feliz.
Hamilton e a Mercedes estão mergulhados num mundo em que nunca é possível ser feliz, porque sempre é possível ser “mais” feliz.
Foto: Mercedes-AMG / Divulgação

Hamilton e a Mercedes estão mergulhados num mundo em que nunca é possível ser feliz, porque sempre é possível ser “mais” feliz (Bauman). “A globalização e o fim das grandes ideologias produziram um individualismo sem precedentes: daí o fenômeno da moda e do consumo de luxo, responsáveis pela aquisição de identidade numa época em que ela já não é determinada pela posição política ou religiosa.” (Lipovetsky)

Viver num mundo de oportunidades passou a ser “uma experiência divertida”. Já foi o tempo em que as coisas eram “predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis”. As derrotas raramente são definitivas, tampouco as vitórias. (Bauman) Dessa forma, os eventos noticiosos nunca têm fim. Se as possibilidades são líquidas e fluidas, elas possuem um prazo de validade – e isso faz com que as possibilidades estejam sempre no tempo presente, sendo assim infinitas.

EVOLUÇÃO DO RECORDE
RECORDE PILOTO GPs ANO QUEM IGUALOU GPs ANO
13 vitórias Ascari 13 1953 Fangio 28 1954
24 vitórias Fangio 47 1957 Clark 71 1967
25 vitórias Clark 72 1968 Stewart 91 1973
27 vitórias Stewart 96 1973 Prost 108 1987
51 vitórias Prost 193 1993 Schumacher 157 2001
91 vitórias Schumacher 247 2006 Hamilton 261 2020

Entre os recordistas de vitórias na Fórmula 1, o esquecido Ascari, lá do início dos anos 50, é o que teve o melhor índice. Ao conquistar sua 13ª vitória (número hoje quase desprezado na F1), Ascari ganhava mais de uma corrida a cada dois GPs (1,9 para ser exato). Mesmo índice de Fangio ao ganhar pela 24ª vez. Nessa estatística, Schumacher ainda supera Hamilton. Michael ganhava uma corrida a cada 2,7 GPs; Lewis vence uma a cada 2,8. Em seguida vem Clark com 2,9, Stewart com 3,6 e Prost com 3,8. Para homens assim, quanto mais corridas, melhor – daí a impressionante marca de Schumacher e Hamilton.

Até onde Lewis Hamilton pode chegar? Por enquanto, o céu é o limite para o piloto inglês de 35 anos. A marca de 100 vitórias talvez esteja em seu radar. Ao contrário de seu ex-companheiro Nico Rosberg – caso raro de piloto que ganhou um mundial e foi curtir outras coisas na vida –, Hamilton parece ter uma sede insaciável por vitórias. Lewis Carl Davidson Hamilton, herói da Fórmula 1, ativista da causa antirracista, talvez já não faça mais das vitórias em Grandes Prêmios o seu ponto de chegada, mas sim um atalho para marcar sua identidade. Afinal, na supermodernidade a história transcorre em ritmo acelerado. “Apenas temos o tempo de envelhecer um pouco e nosso passado já vira história, nossa história individual pertence à história.” (Augé)

Lewis Hamilton, o maior piloto do momento, é único, sim, mas também é fruto do excesso de corridas e do paradigma mercantilista da F1.
Lewis Hamilton, o maior piloto do momento, é único, sim, mas também é fruto do excesso de corridas e do paradigma mercantilista da F1.
Foto: Mercedes-AMG / Divulgação
Parabólica
Compartilhar
Publicidade
Publicidade