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Nenhuma a menos × política pública de menos: quando o Estado falha e o feminicídio avança

Casos de feminicídio expõem a insuficiência imperativa da rede de proteção e o modo como o Estado brasileiro sistematicamente falha em garantir o direito elementar das mulheres à vida em nossa sociedade.

30 dez 2025 - 09h27
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Em meados de dezembro de 2025, no Brasil foram noticiados uma sequência de feminicídios ou tentativas que expõem a violência de gênero em todas as regiões do país: em São Paulo, uma mulher de 31 anos foi atropelada, arrastada por cerca de um quilômetro pelo ex-companheiro, teve as pernas amputadas e veio a falecer 25 dias depois; em Goiás, uma jovem de 19 anos foi morta a facadas por um cliente, que não aceitava o fim da relação e Rosilene Barbosa foi assassinada a tiros pelo ex-marido após anos de ameaças em Rio Verde; em São Paulo, Tatiana Correia dos Santos foi morta em Cordeirópolis; no Distrito Federal, Jane Oliveira foi assassinada pelo namorado; e no Rio Grande do Norte, Maria das Vitórias da Silva foi assassinada pelo ex-companheiro.

Em reação e resposta a esses feminicídios, no dia 07/12/2025 ocorreu uma onda nacional de manifestações contra o feminicídio e a violência de gênero, em mais de 90 cidades, reunindo milhares de pessoas. Ruas, praças e avenidas se transformaram em memoriais improvisados, com cruzes, faixas e cartazes com o lema "Nenhuma a menos". Cada novo caso de feminicídio expõe a mesma chaga social, a insuficiência imperativa da rede de proteção e o modo como o Estado brasileiro sistematicamente falha em garantir o direito elementar das mulheres à vida em nossa sociedade.

Ou seja, há dimensões estruturais relacionadas às políticas públicas, que exigem um olhar sistêmico para diversos segmentos, como quem são os tomadores de decisão no Estado e por que é tão difícil construir políticas públicas de combate ao feminicídio em um país onde o poder político no Estado é hegemonizado por homens brancos que se declaram heterossexuais e cisgênero. Há muitos aspectos a serem analisados em relação ao feminicídio no Brasil e o que vou tentar aqui é apenas esboçar algo a partir do meu lugar de fala e das relações e vivências que carrego pelo olhar da análise sociológica em políticas públicas.

O feminicídio no Brasil não é apenas um dado estatístico alarmante, mas uma expressão da estrutura social patriarcal que organiza relações de poder, distribui desigualdades e naturaliza a violência contra mulheres. De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2025 a maioria das mulheres assassinadas (63,6%) são negras, jovens, pobres e residentes de regiões marcadas pela ausência do Estado.

A violência de gênero, não é um desvio individual, mas uma forma de manutenção da ordem social masculina, onde corpos femininos, sobretudo negros e pobres, permanecem mais vulneráveis à lógica do controle, da dominação, da desigualdade, do extermínio e que vivem em regiões com menor presença do Estado.

Do ponto de vista sociológico, o feminicídio pode ser compreendido como um fenômeno estrutural e histórico que articula patriarcado, racismo e classe social. A sociologia política na análise de políticas públicas traz evidências que o subfinanciamento não é uma falha técnica, mas uma decisão política inscrita na forma como o Estado brasileiro hierarquiza vidas e causa de variadas formas o desmantelamento de políticas públicas.

No caso das políticas públicas para as mulheres essa lógica reforça a desigualdade de gênero e restringe o próprio direito à vida. Outro conceito que pode auxiliar para compreender o feminicídio no Brasil é a interseccionalidade, pois articula gênero, raça, classe e território na análise.

O feminicídio no Brasil também está vinculado a estruturas profundas de machismo e com o pacto narcísico branco na própria dinâmica do Estado brasileiro, como analiso em 570 dias no governo Lula 3. E está dinâmica de poder domina o direcionamento dado às políticas para as mulheres no governo federal. No interior do governo, esse pacto opera como uma coalizão tácita de homens, majoritariamente brancos, tecnoburocratas e autocentrados que, mesmo se dizendo progressistas, mantêm uma lógica de tutela sobre as pautas de gênero.

O orçamento para enfrentamento à violência de gênero na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2024, no qual o montante foi de R$ 119.409.070 e apenas R$ 18.786.895 foram executados. Isto é, há muitas causas para explicar isso como aponta o Relatório produzido no Senado Federal "A Mulher no Orçamento". Por isso temos que começar a analisar os impactos do arcabouço fiscal e como isso afetou as políticas para as mulheres no Brasil. Além disso, também cabe considerar o sequestro de metade do orçamento público pelo Congresso Nacional tornando o quadro de financiamento de políticas públicas no Brasil mais precário.

Paradoxalmente, enquanto os indicadores de violência contra mulheres crescem, o Estado brasileiro mantém orçamentos irrisórios para políticas públicas em relação a demanda social, como as Casas da Mulher Brasileira, centros de referência, delegacias especializadas, campanhas educativas e programas de autonomia econômica vinculadas ao Programa Mulher Viver Sem Violência. A consequência é um sistema de proteção fragmentado, com serviços insuficientes e dependentes da vontade política de governos locais e até estaduais.

O atendimento às mulheres em delegacias no Brasil ainda é marcado por falhas estruturais profundas que revelam tanto o despreparo dos agentes públicos quanto a persistência de uma cultura institucional machista. Em muitos casos, mulheres que buscam ajuda após agressões relatam que enfrentam situações de revitimização.

A Câmara dos Deputados aprovou iniciativas voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, em especial em 2024. Destaca-se ainda, que a bancada cresceu para 91 deputadas eleitas nas eleições em 2022, mas ainda representa pouco o contingente de mulheres que são a maioria em nossa sociedade. No entanto, em meio a esses avanços, de forma antagônica também tramita um projeto de criminalização do aborto legal, que amplia penas e restringe direitos reprodutivos.

O crescimento dos feminicídios no Brasil também precisa ser compreendido junto a expansão do discurso red pill nas redes sociais, um ecossistema misógino e vinculado a extrema direita que forma, educa e socializa meninos e jovens dentro de uma pedagogia do ódio o que reforça e atualiza o machismo estrutural já presente na sociedade brasileira. Somado ao fato do Estado subfinanciar políticas de gênero e negligenciar a educação para a igualdade de gênero, no Congresso não tramita a regulação das redes sociais, que é o espaço onde circula esse tipo de conteúdo sem alguma mediação de legislação específica.

Ou seja, a subalternização das pautas das mulheres nos bastidores de poder no Estado brasileiro não é um mero detalhe administrativo, mas é expressão direta de uma estrutura estatal que reproduz o machismo e o pacto narcísico branco que tende a banalizar a violência contra a mulher e o feminicídio, bem como impede a construção de uma política robusta de proteção e autonomia feminina em nossa sociedade.

Enfrentar o feminicídio no Brasil requer que o Estado e os governos eleitos financiem, coordenarem e estruturem uma rede integrada de proteção, articulando segurança pública, justiça, emprego, remuneração, assistência social, saúde, educação etc. Exige, sobretudo, levar a cabo dentro do próprio Estado e espaços de poder na sociedade a aceitação genuína das mudanças culturais e nas relações de gênero que rechaçam o machismo, a misoginia e que reconheçam a centralidade política das mulheres na vida social.

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Sérgio Botton Barcellos não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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