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Por que os EUA abriram mão de protagonismo na guerra da Síria

Analistas atribuem o papel de coadjuvante do país ao 'efeito Bagdá': a tentativa de evitar ser arrastado para uma guerra longa, dispendiosa e com repercussão negativa sobre a opinião pública, como foi o caso da invasão ao Iraque.

6 set 2018 - 04h52
(atualizado às 08h20)
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'Uma das razões pelas quais os EUA não estão ativos na Síria é pelo 'efeito Bagdá', para evitar se envolver em um conflito em que pode ser arrastado para um atoleiro, como o que aconteceu no Iraque', diz analista
'Uma das razões pelas quais os EUA não estão ativos na Síria é pelo 'efeito Bagdá', para evitar se envolver em um conflito em que pode ser arrastado para um atoleiro, como o que aconteceu no Iraque', diz analista
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"O presidente Bashar al Assad, da Síria, não deve atacar de forma irresponsável a província de Idlib. Os russos e os iranianos cometeriam um grave erro humanitário ao participar desta potencial tragédia humana. Centenas de milhares de pessoas poderiam ser assassinadas. Não deixem isso acontecer", tuitou Donald Trump na segunda-feira.

O presidente dos EUA, assim, levantou a voz contra a "ofensiva final" que o governo da Síria e seus aliados têm preparado para tentar retomar o último grande bastião dos grupos rebeldes e jihadistas, que, desde 2011, tentam derrubar Assad.

O tom da mensagem de Trump, contudo, especialmente o trecho em que pede que "não deixem" o ataque ocorrer, chamou a atenção justamente pelo fato de os EUA não terem tanto protagonismo no conflito quanto atores como Rússia, Irã e Turquia.

Para analistas, o discurso reforça a posição americana no conflito, que tem limitado sua ação ao combate ao grupo autodenominado Estado Islâmico, evitando se envolver diretamente na disputa por poder.

Especialistas dão à postura o nome de 'efeito Bagdá': a tentativa de evitar ser arrastado para uma guerra longa, dispendiosa e com repercussão negativa sobre a opinião pública, como foi o caso da invasão ao Iraque.

O tuíte do presidente foi postado um dia antes do novo livro do jornalista Bob Woodward revelar que Trump esteve a ponto de ordenar o assassinato do presidente da Síria, após receber, em abril de 2017, relatórios sobre um ataque com armas químicas supostamente ordenado pelo regime sírio contra civis.

Woodward foi um dos primeiros repórteres que cobriram o escândalo de Watergate, determinante para a renúncia de Richard Nixon, em 1974.

No livro Fear: Trump in the White House (Medo: Trump na Casa Branca, em tradução livre), com lançamento previsto para 11 de setembro, Woodward revela bastidores do governo Trump, afirma que a administração "está em colapso nervoso" e que auxiliares do presidente teriam agido várias vezes para impedir ações precipitadas do mandatário.

Trump, também pelo Twitter, desmentiu a obra, que teve trechos divulgados nesta semana, e publicou notas nas quais seus auxiliares também negam o conteúdo do livro.

O presidente declarou que o "já desacreditado" livro de Woodward traz "muitas mentiras" e usa "fontes falsas".

Presidente sírio planeja uma ofensiva na província de Idlib, reduto comandado pelos rebeldes e onde vivem 2,9 milhões de pessoas
Presidente sírio planeja uma ofensiva na província de Idlib, reduto comandado pelos rebeldes e onde vivem 2,9 milhões de pessoas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Advertência

Apesar da turbulência causada pela obra e dos desmentidos de Trump, o tuíte do presidente criticando a possibilidade de ofensiva síria sobre a província de Idlib não está sendo interpretado como uma ameaça contra Assad.

A mensagem, segundo analistas, parece mais uma advertência direcionada à Rússia e ao Irã, principais aliados sírios, para não promoverem o ataque.

A posição do presidente americano em relação à ofensiva planejada por Assad também é motivo de preocupação para a ONU (Organização das Nações Unidas). Cerca de 2,9 milhões de pessoas vivem na província, a maioria delas, civis - entre eles 1 milhão de crianças. Por isso, a instituição alerta para uma possível catástrofe humanitária se Assad e seus aliados promoverem um ataque total na região.

Mas como explicar a postura do presidente dos EUA diante de um dos principais conflitos armados da atualidade?

'Ator marginal'

"Os EUA não têm a mesma influência que Rússia, Irã e Turquia têm sobre os atores do conflito na Síria. Acredito que no tom do tuíte há um certo reconhecimento disso", diz Emily Hawthorne, analista do Oriente Médio na Stratfor, uma plataforma de inteligência geopolítica sediada em Austin, Texas.

Colin Clarke, analista da Rand Corporation e pesquisador do Centro Soufan - um centro de estudos dedicado a questões de segurança global com sede em Nova York -, acredita que Washington ficou à margem do conflito.

Forças rebeldes de Idlib se preparam para ofensiva dos aliados de Assad
Forças rebeldes de Idlib se preparam para ofensiva dos aliados de Assad
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Não há dúvida de que os Estados Unidos têm menos influência na Síria do que gostariam, e também menos do que em outros grandes conflitos, como o Iraque e o Afeganistão, em parte porque não têm uma presença militar ativa no terreno", diz ele.

"Não houve um esforço diplomático sustentado como vimos em outros lugares, por isso é natural que tenha menos influência do que seria necessário para trazer esse conflito a um ponto de negociação política", completa Clarke.

Mas, para Emily Hawthorne, o papel de Washington no conflito é consequência de suas próprias decisões. "Os EUA nunca tiveram uma estratégia clara para acabar com o conflito na Síria e lentamente se tornaram menos relevantes nas negociações de paz que estão ocorrendo agora, principalmente entre Irã, Turquia e Rússia", avalia a especialista.

Ela ressalta que um ponto de virada nesse processo ocorreu quando Irã, Rússia e Turquia começaram, em dezembro de 2016, as primeiras negociações em Astana, das quais Washington ficou afastada.

Obama ameaçou o governo sírio, mas não chegou de fato a agir
Obama ameaçou o governo sírio, mas não chegou de fato a agir
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O processo de paz foi conduzido com a ausência de potências ocidentais, enquanto as negociações em Genebra, sob a tutela da ONU, não avançaram.

Hawthorne considera ainda que a perda da influência dos EUA sobre o conflito na Síria está relacionada à decisão de Barack Obama e, em seguida, de Donald Trump, de pôr fim à ajuda que deram aos rebeldes que estavam lutando contra o governo de Assad.

Clarke, por sua vez, aponta que ponto chave na deterioração da posição de Washington no conflito sírio ocorreu quando Obama não reagiu fortemente ao uso de armas químicas pelo governo.

"Os Estados Unidos perderam sua credibilidade na Síria quando Obama não conseguiu cruzar a linha que ele mesmo havia estabelecido quando avisou o governo de Assad que haveria graves consequências caso fossem usadas armas químicas. Quando isso aconteceu, a Casa Branca não agiu", avalia Clarke.

"A partir de então, Assad soube que os Estados Unidos estavam dispostos a fazer qualquer coisa para evitar atuar na Síria, o que abriu a porta para outros atores intervirem, incluindo Irã e Rússia", acrescenta.

Embora Trump tenha bombardeado alvos militares na Síria duas vezes em resposta ao suposto uso de armas químicas pelo governo, especialistas dizem que foram ações isoladas e que não tinham uma estratégia ou faziam parte de algo mais amplo.

'Efeito Bagdá'

A inexistência da estratégia, assim como a baixa presença militar dos EUA na Síria é, para os analistas, proposital.

"Uma das razões pelas quais os EUA não estão ativos na Síria é pelo 'efeito Bagdá', que consiste em quer evitar a qualquer custo se envolver em um conflito em que pode ser arrastado para um atoleiro, como o que aconteceu no Iraque", observa Clarke.

Irã, Turquia e Rússia assumiram o protagonismo no violento conflito na Síria
Irã, Turquia e Rússia assumiram o protagonismo no violento conflito na Síria
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Hawthorne lembra que o processo que levou à queda do líder iraquiano Saddam Hussein provocou uma reação muito negativa da comunidade internacional e dos próprios americanos. Por isso, os EUA estariam evitando atuar de forma similar na questão síria.

"Acredito que nunca houve o desejo nem por parte dos cidadãos nem em Washington de levar adiante uma intervenção na Síria, com seus custos, suas consequências, e ter que responder acusações por ter agido em outro país do Oriente Médio", ressalta a analista.

Para ela, trata-se de um conflito que, no fundo, é uma guerra civil. "É terrível e sangrento, mas não é um conflito em que os Estados Unidos devem necessariamente sentir que precisam se envolver".

Outro inimigo

Assim, em vez de apoiar um lado de forma contundente na disputa entre governo e rebeldes, os EUA optaram por restringir suas operações na Síria e fazer frente ao Estado Islâmico.

"Era lutar contra o que todos consideravam uma ameaça enorme. Washington investiu dinheiro, tempo e energia no treinamento de forças para lutar contra o EI, algo com que Obama e Trump concordam."

Mas é possível que os EUA, no futuro, possam se tornar um ator decisivo no conflito na Síria?

Clarke ressalta que esses tipos de oportunidades geralmente ocorrem em guerras que duram anos. "Os EUA são a única superpotência, têm forças militares mais fortes e uma grande economia", diz, salientando que o país pode ter poder de barganha em negociações futuras.

"A única coisa é que não se pode ter tudo: evitar se envolver em um conflito e, ao mesmo tempo, ser o ator decisivo nele", adverte.

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