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Mundo

Por que migrantes resgatados no mar são levados à Itália?

Socorro marítimo é disciplinado por normas internacionais

9 jul 2019 - 13h38
(atualizado às 14h53)
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Por Lucas Rizzi - Toda vez que uma ONG socorre migrantes no Mediterrâneo e pede autorização para desembarcá-los na Itália surge a mesma pergunta: Por que não na Alemanha? Ou na Holanda, na França, na Espanha, na Líbia, na Tunísia, e por aí vai.

Migrantes resgatados pela ONG alemã Sea Watch no Mediterrâneo
Migrantes resgatados pela ONG alemã Sea Watch no Mediterrâneo
Foto: ANSA / Ansa - Brasil

As operações de busca e resgate no mar (SAR, na sigla em inglês) são disciplinadas por uma série de normas internacionais, como uma convenção assinada em 1979, em Hamburgo, que determina que a missão de socorro é concluída somente com o desembarque dos náufragos em um "lugar seguro".

E é justamente em torno desse último termo que gira toda a polêmica sobre quem deve se responsabilizar pelo primeiro acolhimento a migrantes. A designação do "lugar seguro" deve levar em conta tanto a proximidade geográfica em relação ao local de salvamento quanto o respeito aos direitos humanos.

Uma resolução aprovada em 2004 pela Organização Marítima Internacional (OMI), agência ligada às Nações Unidas, define "lugar seguro" como aquele onde a vida dos náufragos não está mais sob risco e no qual suas necessidades humanas básicas, como alimentação e atendimento médico, possam ser preenchidas.

"O navio de socorro não é um lugar seguro, porque um navio está sempre sujeito a condições meteorológicas, porque a navegação em si é um fenômeno marcado por riscos", diz, em entrevista à ANSA, o senador italiano Gregorio De Falco, voz crítica contra as políticas migratórias do governo e conhecido por sua atuação no naufrágio do navio de cruzeiro Costa Concordia, em 2012.

É por isso que migrantes salvos no Mediterrâneo Central não são levados para Alemanha e Holanda (países de origem de muitas ONGs que operam na região), por exemplo, ou até mesmo para nações como França e Espanha, no sul da Europa, mas distantes para uma viagem com náufragos.

Área SAR

Cada país tem uma própria área SAR definida por convenções internacionais e na qual ele fica responsável por coordenar operações de busca e resgate. A de Malta é uma ampla faixa que vai da Tunísia à Grécia e separa as zonas de socorro de Itália e Líbia, o que acaba motivando divergências.

A Itália defende que o desembarque deve ocorrer no país responsável pela área SAR onde ocorreu o socorro. Malta, que seria penalizada por essa interpretação, quer que o critério de proximidade prevaleça - a ilha italiana de Lampedusa, por exemplo, fica a apenas 100 quilômetros da Tunísia. Em função disso, são frequentes os casos em que navios de ONGs veem a porta fechada tanto pelos italianos quanto pelos malteses.

Outro argumento de Valeta é que sua capacidade de acolhimento já está saturada. Segundo relatório da agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a ilha abriga 10,4 mil deslocados internacionais, o que significa 22 para cada mil habitantes.

Essa é a segunda maior taxa na União Europeia, atrás apenas da Suécia (28 para cada mil habitantes), porém ainda está distante de países como Líbano (158 para cada mil) e Jordânia (79 para cada mil). A Itália, por sua vez, acolhe 457,4 mil refugiados e solicitantes de refúgio, seis para cada mil habitantes, quase quatro vezes menos que Malta.

África

Outro ponto controverso diz respeito à Líbia. Em uma iniciativa capitaneada pela Itália, a UE ajudou o país africano a montar sua Guarda Costeira e definir sua própria zona SAR, deixando um bom pedaço do Mediterrâneo sob responsabilidade de Trípoli.

O problema é que a Líbia, flagelada por oito anos de guerras de milícias, não existe hoje enquanto Estado unificado e já demonstrou não ter capacidade de garantir a segurança de migrantes. São muitos os relatos de deslocados internacionais presos em centros de detenção e tortura controlados por coiotes. Na semana passada, um bombardeio matou dezenas de migrantes em meio à guerra do general Khalifa Haftar para conquistar Trípoli.

"A Líbia não é um porto seguro. Todos já disseram, a OIM [Organização Internacional para as Migrações], a União Europeia, o Conselho da Europa. A Líbia declarou área SAR em uma zona ampla que se estende da própria costa até 180 milhas, mas não consegue indicar um lugar seguro. É uma contradição", afirma o senador De Falco.

O ex-oficial da Capitania dos Portos explica que declarar uma área SAR pressupõe capacidade de coordenação com meios marítimos e aéreos, algo que a Líbia não mostrou. "Parece-me, pela posição de latitude e longitude, que o centro de coordenação fica no velho aeroporto de Trípoli, que foi bombardeado. Essa hipocrisia deve ser interrompida, não existe um verdadeiro centro de socorro marítimo na Líbia, não existe", salienta.

A resolução aprovada pela OMI em 2004 dedica um parágrafo a refugiados, afirmando que as autoridades devem levar em consideração a "necessidade de evitar desembarques em territórios onde as vidas e liberdades daqueles que alegam medo de perseguições possam estar ameaçadas".

O próprio chanceler italiano, Enzo Moavero, já admitiu publicamente que a Líbia não é um porto seguro, mas o ministro do Interior Matteo Salvini usa frequentemente seu perfil no Twitter para comemorar resgates feitos pela Guarda Costeira da Líbia, apesar da situação delicada vivida pelo país africano.

"Se os líbios não são capazes de combater o tráfico de humanos em seu território, como vão fazer isso em 350 mil quilômetros de mar? Se não controlam nem seu aeroporto, como vão garantir intervenção em uma extensão gigante de água? O conto da Líbia como porto seguro se acabou", diz o fundador da ONG espanhola ProActiva Open Arms, Òscar Camps.

A Tunísia, por sua vez, é mais estável e tenta consolidar sua democracia, nascida após a Primavera Árabe, mas as ONGs consideram que o país ainda não está preparado e equipado para lidar com um grande número de migrantes e refugiados.

A sensação de que pessoas tiradas do mar são sempre levadas à Itália também não é corroborada pelos números. Embora o país tenha de fato sido a principal porta de entrada para deslocados internacionais na UE entre 2016 e 2017, dados da OIM mostram que as rotas do Mediterrâneo Oriental, com destino à Grécia (15,2 mil chegadas em 2019), e do Mediterrâneo Ocidental, em direção à Espanha (10,8 mil), são hoje muito mais utilizadas que a do Mediterrâneo Central, que termina na Itália ou em Malta (4,4 mil).

Ansa - Brasil   
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