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Mundo

'Cortaram meu pescoço e lançaram meu bebê no chão'

Sobreviventes de massacre em vilarejo de Mianmar relatam à BBC estupros, assassinatos e tortura cometidos pelo Exército em ação que evidencia processo de limpeza étnica no país.

17 nov 2017 - 06h42
(atualizado às 07h34)
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Na fronteira entre Mianmar e Bangladesh, centenas de milhares de pessoas feridas, famintas e traumatizadas se aglomeram em campos precários. São os sobreviventes de uma série de massacres, estupros e expulsões perpetrados desde agosto pelo Exército birmanês contra a minoria islâmica rohingya.

A jovem Rashida Begum mostra a enorme cicatriz em seu pescoço à equipe da BBC.

"Eles (os soldados) tentaram cortar minha garganta. (...) Fomos cercadas pelos soldados e forçadas a nos ajoelhar à beira do rio. Começaram, então, a nos estuprar e a matar. Eu estava com o meu bebê. Arrancaram ele de mim, o atiraram no chão e o mataram."

Rohingyas expulsos de suas casas em Mianmar
Rohingyas expulsos de suas casas em Mianmar
Foto: BBC News Brasil

Diversos relatos semelhantes foram compilados pela reportagem da BBC, que acompanhou as vítimas de um massacre específico: o ocorrido em 30 de agosto na aldeia de Tula Toli, no Estado de Rakhine, oeste de Mianmar.

A partir de depoimentos, vídeos, mapas e dados de violência sistemática coletados por diferentes organizações, a BBC identificou evidências de limpeza étnica na região.

Rohingyas relatam estupros, matança indiscriminada e bebês atirados ao chão em massacre em Mianmar:

"No dia 30 de agosto, vimos os soldados chegando pelo norte, disparando tiros e queimando casas", conta o rohingya Mohammed Suleiman. "As pessoas correram de medo e se aglomeraram à beira do rio."

Suleiman perdeu a mulher e três de suas filhas no ataque. Ele diz que a menina mais nova hoje chora pedindo pela mãe. "O que vamos fazer sem ela?", questiona ele, aos prantos.

Outros sobreviventes relatam que os militares saquearam bens dos rohingya, incendiaram residências, separaram homens e mulheres, mataram os primeiros e estupraram as segundas. Bebês eram comumente atirados ao chão e mortos com golpes de canos de fuzis ou de bambus.

Como começou

A crise eclodiu em 25 de agosto, quando membros de uma milícia armada rohingya atacaram postos policiais birmaneses e mataram 12 pessoas.

A resposta das autoridades foi uma "operação de limpeza", que deixou inúmeros mortos e em três meses forçou a fuga de 600 mil rohingyas a Bangladesh. Muitos deles ainda aguardam permissão oficial para permanecer no país vizinho.

Mohammed Suleiman chora a morte da mulher e três filhas
Mohammed Suleiman chora a morte da mulher e três filhas
Foto: BBC News Brasil

A BBC coletou diversos indícios de que as autoridades birmanesas já planejavam uma ação em Rakhine e usou o ataque da milícia rohingya como justificativa para o que se tornou uma matança indiscriminada contra civis islâmicos no país de maioria budista.

"Fui estuprada com um bambu que eles colocaram na minha vagina", relata uma sobrevivente. "Quando os soldados finalizavam os estupros, matavam as mulheres. Eles acharam que eu tinha morrido e me deixaram lá."

Na quinta-feira, um comitê da Assembleia Geral da ONU fez um apelo para que Mianmar pusesse um fim às operações militares, dizendo que elas resultaram em "violações sistemáticas e abusos de direitos humanos" no Estado de Rakhine.

O Exército birmanês nega ter cometido abusos contra os rohingya e, em um relatório interno, eximiu-se de culpa pela matança da minoria.

Uma das crises mais longas e negligenciadas do mundo

Desde 1948, quando Mianmar se tornou independente do Reino Unido, os rohingya têm sido vítimas de tortura, negligência e repressão.

A crise do povo rohingya é uma das mais longas do mundo e também uma das mais negligenciadas. Esse diagnóstico, feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), levou a ONU a aprovar uma resolução em dezembro de 2014 que exortava Mianmar a permitir o acesso à cidadania para a minoria, classificada de forma geral como apátrida.

Refugiados
Refugiados
Foto: BBC News Brasil

No país, eles são proibidos de se casar ou de viajar sem a permissão das autoridades e não têm o direito de possuir terra ou propriedade.

O povo representa cerca de 5% entre 60 milhões de habitantes de Mianmar, e sua origem ainda é amplamente debatida.

Por sua parte, eles afirmam serem indígenas do Estado de Rakhine, anteriormente conhecido como Arakan, no oeste do país, mas outros apontam que são, na verdade, muçulmanos de origem bengali que migraram para Mianmar durante a ocupação britânica.

Desde 1948, quando o país se tornou independente, eles têm sido vítimas de tortura, negligência e repressão.

Com as dramáticas mudanças políticas e sociais locais nos últimos anos, os ânimos das várias comunidades que habitam o país entraram em ebulição e uma onda de violência e discriminação voltou a emergir contra os rohingyas.

Após ter sido governado por uma junta militar por mais de meio século, Mianmar vinha passando por uma transição para a democracia e por melhorias no campo social.

Vítima de estupro
Vítima de estupro
Foto: BBC News Brasil

Mas a situação não melhorou para os rohingyas.

Em 2012, duas ondas de violência, uma em junho e a outra em outubro, orquestradas por grupos extremistas de maioria budista em Rakhine, deixaram cerca de 140 mortos, centenas de casas e edificações muçulmanas destruídas e 100 mil desabrigados.

Autoridades e a polícia foram acusadas de não agir para defendê-los.

Como explicou o correspondente da BBC no sudeste da Ásia, Jonathan Head, em um relato feito em 2015, "Rakhine é o segundo Estado mais pobre em Mianmar, e este é um dos países menos desenvolvidos do mundo".

"A pobreza, negligência e repressão têm desempenhado um grande papel na violência étnica", diz o repórter.

"Adicione a isso as memórias históricas amargas e os medos sentidos por comunidades rivais do que poderiam perder ou ganhar no ambiente político novo e incerto de Mianmar", acrescenta.

Em 2012, 100 mil muçulmanos rohingyas ficaram desabrigados.

Direitos civis

Tanto as Nações Unidas quanto as organizações de defesa dos direitos humanos pedem que as autoridades de Mianmar revejam a Lei de Cidadania de 1982, de forma a garantir que os rohingyas não continuem sem pátria.

Menino
Menino
Foto: BBC News Brasil

Essa é a única maneira, dizem, para combater as raízes da longa discriminação contra essa etnia.

Contudo, muitos budistas de Mianmar nem sequer reconhecem o termo rohingya. Chamam-nos de "bengalis muçulmanos" - uma alusão à visão oficial de que os rohingyas são imigrantes de Bangladesh.

Como diz Jonathan Head, cerca de 800 mil rohingyas de Mianmar não possuem cidadania. E isso de certa forma incentivou budistas a acreditar que sua campanha de segregação e expulsão forçada é justificada.

Mas a segregação, explica o correspondente da BBC, não só é social.

"As longas décadas de isolamento e de injustiça crônica impostas pela junta militar de Mianmar criou um preconceito e ressentimento no Estado de Rakhine. E isso tem fermentado um clima venenoso da desconfiança e falta de informação."

"É claro que, além de a separação física dos muçulmanos e budistas, também há uma extrema segregação mental."

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