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Ásia

25 anos de Tiananmen: o mistério do chinês que segue preso

Miao Deshun foi condenado de ter cometido um incêndio criminoso, por ter atirado uma cesta contra um tanque em chamas, durante os protestos

3 jun 2014 - 16h43
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<p>Entre abril e junho de 1989, milhares de pessoas saíram às ruas em um protesto a favor de mudanças no país</p>
Entre abril e junho de 1989, milhares de pessoas saíram às ruas em um protesto a favor de mudanças no país
Foto: AP

Quando a agitação nas ruas diminuiu e os tiroteios acabaram, o protesto da praça da Paz Celestial, a praça Tiananmen, em Pequim, parecia ter finalmente chegado ao fim, após uma violenta repressão das autoridades, no ano de 1989. Mas para muitos ativistas, a história de perseguição estava apenas começando.

Milhares foram detidos e liberados, mas 1,6 mil acabaram condenados à prisão. Atualmente, acredita-se que apenas uma pessoa condenada na época ainda permaneça atrás das grades: Miao Deshun.

Não se conhece nenhuma foto de Deshun, que antes da prisão trabalhava como operário em Pequim. Ele foi condenado de ter cometido um incêndio criminoso, por ter atirado uma cesta contra um tanque em chamas. Por este "crime", Deshun foi condenado à morte, mas a sentença acabou suspensa e convertida em prisão perpétua anos depois.

Deshun não deve ser libertado antes de 15 de setembro de 2018. A BBC entrevistou várias pessoas que conheceram o prisioneiro. Ele é descrito como um homem dolorosamente magro.

"Ele era uma pessoa quieta. Frequentemente estava muito deprimido", recordou Dong Shengkun, um outro chinês que foi condenado pelos protestos de 1989 e que chegou a dividir a cela com Deshun.

"Nós dois fomos condenados à morte e tivemos a sentença suspensa e deveríamos ficar com os pés acorrentados. Eu estava acorrentado, mas ele não. Ele disse que os guardas provavelmente pensaram que Deshun estava muito magro para conseguir usar as correntes nos pés. Ele não conseguiria andar com o peso das correntes", lembra Shengkun.

O movimento de 25 anos atrás é conhecido por ter sido liderado pela elite estudantil pró-democracia da China, mas os protestos se fortaleceram porque contaram com a participação de trabalhadores e desempregados.

Centenas de milhares de pessoas tomaram a praça da Paz Celestial, em Pequim, exigindo reformas políticas. Os manifestantes ficaram na praça durante semanas, enquanto uma ferrenha disputa de poder se dava dentro do Partido Comunista.

Os políticos linha-dura venceram a disputa política e deram a ordem para retirar os manifestantes da praça à força, causando o massacre de centenas de pessoas.

Morto ou vivo?

O Departamento de Prisões de Pequim se recusou a responder às perguntas sobre Miao Deshun, ressaltando que eles nunca respondem a questões de jornalistas estrangeiros.

A organização Dui Hua, baseada nos Estados Unidos e que defende os direitos dos prisioneiros chineses, afirma que é muito provável que Deshun seja o último prisioneiro por crimes que datam da época do protesto na praça da Paz Celestial em 1989.

É claro que é possível que Miao Deshun tenha morrido na prisão há anos e a notícia de sua morte ainda não tenha sido divulgada. O Departamento de Prisões dá informações apenas para os familiares diretos.

Mas, presumindo que Deshun ainda esteja vivo, qual seria a razão de ele ainda estar preso depois que a maioria dos outros condenados pelo protesto já foi libertada?

A maior parte dos ex-prisioneiros concordam que, diferente dos outros, Deshun se recusou a assinar a carta se arrependendo da participação nos protestos. Ele também se recusou a trabalhar na prisão, escolhendo passar os dias lendo o jornal em sua cela.

"Ele é o último prisioneiro pois nunca admitiu que ele estava errado. Ele se recusou a obedecer os regulamentos e se recusou a participar do trabalho de reeducação", disse outro ex-prisioneiro Sun Liyong.

Liyong agora vive em Sydney, na Austrália, e trabalha no setor de construção. Em seu tempo livre ele coordena um fundo para ajudar as vítimas e ex-prisioneiros com envolvimento nos protestos da Praça da Paz Celestial. Ele afirma não ter certeza se Deshun está vivo.

"Mantenho contato com ex-prisioneiros e todas as vezes pergunto se eles tiveram notícias de Miao. A última vez que alguém o viu foi há cerca de uma década."

Status

Outros ex-prisioneiros afirmam que a longa sentença de Deshun se deve ao status mais humilde, ao fato de ele ser apenas um operário que se envolveu nos protestos.

"Quando as sentenças de prisão foram determinadas, cidadãos comuns receberam as mais duras", explica o ex-prisioneiro Zhang Baoqun. "Os caras com bons contatos ou aqueles protegidos por certas associações receberam sentenças mais leves."

"Ninguém falou em nome de pessoas como nós. Wang Dan, um dos organizadores do protesto, foi condenado a apenas quatro anos de prisão", disse.

"No começo dos anos 1990, quando familiares (de Miao) foram visitá-lo, ele recusou as visitas. Ele não queria que os pais, já velhos, viajassem para tão longe para vê-lo. Desde então, ninguém o viu. Às vezes, Miao e eu ficávamos trancados ao mesmo tempo, a minha cela oposta à da dele", acrescentou.

"As autoridades o trataram como se ele fosse louco. Ouvi que eles o levaram para a prisão de Yanqing", disse Dong Shengkun, que acrescenta não saber muito sobre a prisão, exceto que fica muito longe.

A reportagem da BBC dirigiu durante horas pelas montanhas até chegar aos portões de Yanqing, uma instituição para prisioneiros idosos e com problemas mentais.

A prisão fica em um local tão remoto que parece até que Miao Deshun foi banido da sociedade, levado para longe da política que ajudou a fomentar durante os protestos da praça da Paz Celestial.

De volta à vida

Outros ex-prisioneiros tiveram graus variados de sucesso para se adaptar novamente ao dia a dia.

Depois de sair da prisão em 2003, Zhang Baoqun teve vários empregos para sustentar a esposa e o filho, que nasceu depois de ele ser libertado.

Baoqun afirma que o tempo na prisão é uma "mancha escura" em sua história, e questiona ele mesmo suas ações em 1989.

"Não participaria de algo como aquilo de novo. Não teve significado. Você não pode mudar seu país, não importa o quanto você tente", disse.

Desde que saiu da prisão há oito anos, Dong Shengkun nunca conseguiu encontrar um emprego em tempo integral. Afastado da esposa e do filho, ele vive com a mãe de 76 anos, mas não se arrepende de suas escolhas.

"Tenho a consciência limpa. Tantas pessoas se sacrificaram. E eles não sacrificaram suas vidas pela sociedade materialista de hoje. O povo chinês ficou mais rico agora, mas não deveríamos nos importar menos simplesmente porque nossa vida melhorou."

E a longa prisão de Miao Deshun não o surpreende.

"Não estou surpreso por ele ainda estar preso. Foi há 25 anos, mas as autoridades ainda podem fazer o que quiserem."

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