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África

"Fui castigada porque me apaixonei", diz mulher açoitada no Mali

Salaka Djicke, 24 anos, moradora de Timbuktu, recebeu 95 chibatadas em praça pública por ser vista com um homem que não era o seu marido, um episódio que mostra o horror vivido sob domínio de militantes islâmicos

8 fev 2013 - 12h05
(atualizado às 14h49)
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O caso de Salaka Djicke reflete o horror vivido por 10 meses de ocupação de militantes islâmicos na cidade de Timbuktu
O caso de Salaka Djicke reflete o horror vivido por 10 meses de ocupação de militantes islâmicos na cidade de Timbuktu
Foto: AP

A história de amor no deserto do Mali começou no telefone, quando ele discou o número errado. E quase acabou com a morte do casal pelas mãos de extremistas islâmicos que consideraram seu romance “haram” – proibido.

A história é um exemplo de como os militantes ligados a Al-Qaeda aterrorizaram a população, açoitando meninas e mulheres no norte do Mali quase diariamente por não adotarem ao pé da letra o código moral islâmico conhecido como Sharia. O caso também é um testemunho do violento confronto entre duas faces do Islã: os brutais invasores contra os que seguem uma versão moderada da religião em Timbuktu, um centro de ensino islâmico.

Salaka Dkicke é uma menina de grandes ossos e rosto redondo, com coxas torneadas apesar do deserto, um terreno que deixa muitas mulheres sem curvas. Até que os islamitas chegassem e colocassem seu mundo de cabeça para baixo, a garota de 24 anos vivia uma vida de relativa liberdade.Durante o dia, ela ajudava sua mãe a assar pão em um forno de barro, vendendo cada pedaço a 50 francos (US$ 0,10). À tarde, vendia espetinhos de carne que ela mesma assava na rua. Ela guardava o dinheiro que ganhava para comprar maquiagem e ir ao cabeleireiro.

Assim como suas irmãs e amigas, ela falava abertamente com homens – incluindo o estranho que a telefonou por engano mais de um ano atrás.

O homem pensou estar ligando para sua prima. Quando ouviu a voz de Salaka, ele se desculpou. Sua voz era polida, mas firme, com a cadência de um homem jovem. Ela flertou, e sua risada entregou a sua juventude.

Eles começaram a conversar.

Uns dias depois, ele ligou novamente. Por duas semanas, eles conversaram quase todos os dias, até que ele perguntou o endereço da jovem.

Salaka Djicke mostra o local onde ela foi açoitada pela polícia islâmica por ter sido vista com um homem que não era o seu marido
Salaka Djicke mostra o local onde ela foi açoitada pela polícia islâmica por ter sido vista com um homem que não era o seu marido
Foto: AP

Ela explicou como ele poderia achar a casa de barro na rua 141, passando a torre de água também feita de barro, em um bairro a menos de 1,5 km de onde ele vendia gasolina em tonéis na beira da estrada. Ela teve tempo para colocar um vestido amarelo.

Ele chegou de moto.

Ele era mais velho – ela não soube dizer quanto – e já era casado, uma condição normal em praticamente todas as regiões muçulmanas, já que homens podem ter até quatro esposas.  Ela o achou bonito.

Daquele dia em diante, ele terminava as ligações telefônicas com a frase “Ye bani”, ou “Eu te amo” na língua Sonrai. Ao invés de Salaka, ele a chamava de “cherie” – querida em francês, língua ainda falada na antiga colônia francesa.

Na época que o primeiro grupo de rebeldes carregando bandeiras do Movimento Nacional para Libertação de Azawad passou pela frente da casa de Salaka, dia 1º de abril, os dois já viam um ao outro há meses. Ele ligou para saber se ela estava bem.

Os rebeldes em uniformes militares deixaram seus objetivos evidentes: eles queriam criar uma pátria independente que seria chamada "Azawad para o povo tuaregue marginalizado do Mali".

Apenas uns dias depois, um grupo diferente de rebeldes chegou. Eles usavam barbas e vestiam túnicas comuns no Afeganistão e no Paquistão. As bandeiras pretas que carregavam fez um morador lembrar os vídeos que havia visto no YouTube da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico. Eles diziam ser os Ansar Dine, ou os “Defensores da Fé”.

Eles distribuíram um panfleto informando como as mulheres deveriam usar o véu islâmico, e com quem elas poderiam ou não andar. Evitem o contato com as mulheres, dizia o panfleto entregue aos homens.

Um dos que recebeu o panfleto era o namorado de Salaka. Com sua moto, ele foi até a casa dela para mostrar o informe.

Ela não tinha dinheiro suficiente para comprar o véu indicado para cobrir seu corpo inteiro (liso e sem cores). Então, seu namorado foi até o mercado e comprou dois, um vermelho e outro azul. As mulheres subsaarianas estão acostumadas a usar cores vibrantes, por isso ele não conseguiu achar nenhum véu preto.

O medo era palpável nas ruas de Timbuktu. Salaka e seu namorado pararam de se ver em público. Quando ele ia até a casa dela, eles se ficaram em um jardim cercado na casa dos pais dela.

Encontros secretos

Mesmo na relativamente moderna Timbuktu, não é considerado apropriado deixar um casal sozinho em um cômodo. Então ele pediu que um amigo emprestasse uma casa vazia em um bairro distante cerca de 1,5 km dali.

Ela teria coragem de encontra-lo lá durante uma hora, uma vez por semana?

Ela hesitou. Ele implorou, dizendo que não poderia ficar sem vê-la. Eles descobriram que a polícia islâmica parava as patrulhas às 22h. Ela foi uma vez e voltou para casa segura, então foi novamente.

Eles começaram a se encontrar uma vez por semana. Ela insistia em ficar não mais do que 40 minutos. Ele a trazia na garupa de sua moto, parando perto da casa e deixando o veículo atrás de uma duna para evitar chamar atenção.

Nessa época, os islamitas estavam batendo em todas que vestiam roupas consideradas inapropriadas, de grávidas a avós, passando por meninas de 9 anos. Uma mulher não poderia nem conversar com seu próprio irmão.

Em certo ponto, Salaka sabia que eles seriam descobertos. Ela planejava o que diria quando chegasse o momento.

Em uma versão, ela diria que ele era o seu tio. Em outra, diria que era o seu irmão mais velho. Em mais uma, eles tentariam se passar por marido e mulher.

A captura

Na noite do dia 31 de dezembro, os dois deixaram a casa de Salaka de moto em direção ao oeste, pegando a rodovia 160.

Eles passaram pelo forno de pão que pertencia a uma de suas concorrentes da sua mãe. Também passaram um por um beco onde havia tijolos de barro deixados para secar. Dobraram à direta, depois à esquerda, e então à direita de novo, fazendo um caminho confuso para ter certeza de que ninguém os seguia.

Quando eles chegaram perto, preferiram os caminhos mais estreitos, usados apenas por motocicletas e burros de carga, onde as caminhonetes usadas pela polícia islâmica não passavam. Eles passaram duas vezes pela casa onde planejavam se encontrar. Então, ele desligou o motor, disse para que ela ficasse a vários metros de distância dele e levou a moto para a duna de areia onde costumava escondê-la.

Ela o viu se afastar. Sua respiração era tão ofegante que achou que as estrelas podiam ouvi-la. Ele passou pela primeira esquina, pela segunda, e então pela terceira. Homens barbudos vieram a pé da terceira intersecção. Eram quatro. O seu amor pegou sua moto e acelerou em direção à areia. Ele era casado e pagaria um preço maior.

Ela sabia que não conseguira fugir. Então ficou parada. E nos momentos que os homens levaram para chegar até ela, percebeu que seria fútil mentir.

A prisão

Eles a levaram para o quartel-general da polícia islâmica, dentro de um banco local. Ela foi jogada em um local onde costumava ficar um caixa eletrônico e trancaram a porta.

Naquela noite, vendo que Salaka não havia voltado para casa, sua irmã tentou localizá-la no telefone celular. A polícia islâmica atendeu e disse onde Salaka estava.

Pela manhã, sua família entregou um pedaço de pão pelas grades, alimentando-a como um animal no zoológico. Mais tarde, a polícia a transferiu para uma prisão de mulheres montada em uma área da penitenciária local. Pelas três noites seguintes, ela dormiu sozinha em uma grande cela com chão de cimento.

No dia 3 de janeiro ela foi levada ao tribunal islâmico. Apenas oito dias antes do presidente francês François Hollande aprovar a intervenção militar no Mali, Salaka foi condenada a 95 chibatadas por ser flagrada com um homem que não era seu marido. Era uma pena severa, mesmo para os padrões dos islamitas.

As chibatadas

Eles a levaram ao mercado no dia 4 de janeiro, o mesmo lugar onde ela comprava carne para fazer os espetinhos. Ela reconheceu os vendedores. Um deles usou o telefone para gravar o que aconteceria na sequência.

A polícia fez com que ela ficasse de joelhos. Eles disseram para que ela tirasse o vestido e deixasse apenas uma fina mortalha protegendo sua pele. Crianças curiosas se aproximaram para ver o que estava acontecendo.

O que eles disseram a ela pode ser testemunhado por dezenas de moradores de Timbuktu, e ainda pode ser ouvido no telefone celular do vendedor.

O executor anunciou o crime e a punição de Salaka. Então ele começou a açoitá-la com um chicote feito com um galho de árvores. Ela gritava e se contorcia de dor. Eles bateram tão forte e por tanto tempo que ela já não tinha certeza se o véu que a cobria ainda estava inteiro. Ela podia sentir o sangue escorrendo.

Quando o castigo terminou, eles disseram a ela que se a vissem novamente com um homem, seria morta.

Seu namorado ligou para ela assim que ela chegou em casa. Na noite em que Salaka foi presa, ele fugiu para a capital do Mali, tornando-se uma das 383 mil pessoas que fugiram das suas casas no norte do país.

Ele disse muitas vezes que sentia muito e prometeu casar com ela. Mas ainda não retornou. Ela prefere não dizer o nome dele, temendo que os islamistas voltem.

Seu semblante fica relaxado quando fala dele e se contrai quando descreve a dor e a humilhação. Não há criança em Timbuktu que não a reconheça, ela diz. Agora ela evita ir ao mercado, pedindo que às irmãs que comprem carne.

“Era um regime tirânico, que não tinha pena das mulheres”, ela diz. “Eu não sou a única que passou por isso. Eu fiz isso porque estava apaixonada”.

Semana passada, Salaka era uma das milhares de pessoas que foram às ruas saudar os soldados franceses que libertaram a cidade. Ela jogou fora seus véus azul e vermelho.

Fonte: AP AP - The Associated Press. Todos os direitos reservados. Este material não pode ser copiado, transmitido, reformado o redistribuido.
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