Espelho
- Sincero é o espelho. Não faz média. Aí a pessoa senta, olha mas não se vê e fala.
"Sabe o cabelo da Renata Vasconcellos? Quero igual."
40 anos de tesoura. Leo - o Leocádio - começou num salão no Bom Retiro.
"Sabe o estilo da Gal?" Perguntavam moças com jeito hippie, nos anos 1980.
"Sabe o corte da Malu Mader?" Pediam jovens executivas, na década de 2000, já no salão da Barra Funda.
- Tem tintura roxa? Indagou um moleque de 17 anos, hoje de manhã, no endereço novo da Augusta.
- E?
- Atendi, mas o certo ali é o penteado do Alexandre de Moraes.
As costas encurvadas não são pela posição de trabalho, sempre inclinada dos cabelereiros. Léo suspira.
- É muita responsabilidade. A pessoa quer sair mais bonita que entrou. Às vezes é impossível.
Leo conta tudo isso num ambiente, onde também se persegue a beleza e, por isso mesmo, é tomado por espelhos: a academia aqui do bairro.
Outra conexão com salões de beleza: fala-se muito aqui.
Nas duas esteiras do canto, os passos firmes somam 150 anos. Neusa e Clotilde, que se conheceram há semanas, conversam a 4 km/h.
- Você não veio ontem?
- Levei o Élcio para fazer exame.
- Podia vir depois.
- Ele pediu para eu fazer frango com quiabo. Elcio sempre diz que a gente tá casado há mais de 50 anos e um tem que ajudar o outro.
- Ele te ajuda em quê?
- Ah, não sei... deixa eu continuar.
- Sei.
- Depois, o Élcio quis que a gente visse junto a novela da tarde. Eu preferia vir pra cá, mas deu dó.
- Eu não tenho mais esse problema. Faço o que eu quero, quando eu quero, desde que o meu marido foi embora.
- Não brinca, Clotilde, foi pra onde?
- Pro cemitério.
Moacir e Aníbal racham o pagamento do personal. Rodrigo se divide entre os dois alunos e a tv, que repete a Copa Feminina.
- Moacir, você viu que a tinturaria do Neto e a pensão da Iza foram demolidas? Já botaram o tapume. Os 2 estavam até aqui de dívidas do IPTU.
- É a mesma rua onde derrubaram o antigo cinema e o armarinho da Zélia. Lá, vai ser loja de conveniência embaixo e um prédio de 35 andares em cima.
Camila quer mais músculos e menos gordura.
O exercício é penoso, levanta com o abdômen uma carga de 80 kg.
Tânia se aproxima.
- Por que tanto peso, gata?
- Pra barriga diminuir e a bunda aumentar.
- "Cê é loca?" Tu "é mó gostosa da academia".
- Meu marido reclama.
- Teu marido é um tonto. Homem não entende de mulher. Tu tá linda.
- Também te acho gata, Tânia.
- Sabia que sou atriz?
- Uau
- Quer ver minha peça?
- Claro.
- Vai sozinha, depois te levo pra jantar.
Urbanismo, casamento, mentiras, fofoca. Como são saborosas as conversas desses acadêmicos da Vila Buarque. E o melhor: nas pausas silenciosas alguns até fazem exercício.
Uma lufada cheirosa de capim limão se espalha.
- Tô indo.
É o Leo, agora de ombros esticados e peito estufado. O cabelo grisalho, que chegou penteado pelo vento, foi anestesiado pelo gel.
A caminho do salão, Leo vai em busca da sinceridade de novos espelhos. Janela de carro, vitrine, tela de celular ou - de preferência - o reflexo de dois olhos bem acesos.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter