PUBLICIDADE

EUA: A Inquisição na Democracia

21 mar 2019 - 16h00
Compartilhar
Exibir comentários

Os EUA tinham até 1947 uma política de liberdades desconhecidas no resto do mundo. Porém, o acirramento da Guerra Fria e o medo do comunismo criaram o clima para que uma onda de perseguições, capitaneadas pelo Comitê de Atividades Anti-americanas,  tivesse início, maculando notavelmente o acervo de independência e tolerância que havia no país até então, e do qual todo o cidadão americano se orgulhava.

Senador Joseph MacCarthy, caçador de comunistas
Senador Joseph MacCarthy, caçador de comunistas
Foto: Reprodução

A plena liberdade de expressão

“Idéias de como fazer novas capacidades de produção não se desenvolveram muito desde o dia em que o cavalo tinha que fazer o que o homem não podia. Vocês não acham que, em tal situação periclitante, cada nova idéia deva ser examinada cuidadosa e livremente?”

Bertold Brecht ao Comitê de Atividades Anti-americanas, 30. 10.1947

Durante quase dois séculos da sua existência, os Estados Unidos foram um oásis do livre-pensamento, sendo que seus artistas, homens de letras e cientistas usufruíam de uma situação invejável. Tinham, graças à iniciativa constitucional de Thomas Jefferson, uma liberdade desconhecida no restante do convulsivo e semi-bárbaro Continente.

Ao contrário dos demais intelectuais que vivam abaixo do Rio Grande - os seus congêneres latino-americanos, íntimos dos cárceres, dos exílios, e da onipresente carranca da censura -, os americanos, quando processados ou constrangidos pelas autoridades por meio de um processo qualquer, devia-se, na maioria dos casos, à afronta, à maledicência ou à impudícia da parte de alguns deles. Raros eram os questionamentos feitos contra eles em razão de delitos de opinião ou de pensamento. Na maior parte das vezes, eles eram incomodados por coisa miúda, quando, como disse o velho e conservador jurista britânico sir William Blackstone, eram chamados “a assumir as conseqüências da sua própria temeridade”.

Thomas Jefferson, a sua Primeira Emenda garantiu a livre expressão
Thomas Jefferson, a sua Primeira Emenda garantiu a livre expressão
Foto: Reprodução

Uma pergunta fatal

Gozaram eles, no geral, de uma tolerância desconhecida em qualquer outra parte do mundo e, reforçando-os ainda mais, o direito deles à “liberdade de palavra ou de imprensa” encontrava-se assegurado constitucionalmente desde a aprovação da 1ª Emenda em 1789! Mas a partir de 1946-7 uma simples pergunta desmanchou tal cenário excepcional de liberdades: “você é ou alguma vez foi membro... do Partido Comunista?

Dita e repetida pelos parlamentares integrantes do Comitê de Atividades Anti-americanas (Un-American Activities Comittee), tal frase dirigida asperamente aos que foram convocados ou constrangidos a depor por serem suspeitos de práticas comunizantes ou afins, assinalou o término da bem-aventurança em que os intelectuais viviam na sociedade norte-americana. Se afirmavam positivamente, dizendo “sim” à pergunta, confirmavam a subversão; negando-a, eram presos por perjúrio. Os que se recusavam a responder apelando para a 5ª Emenda (que impedia o cidadão de inculpar-se) eram detidos por desacato ou publicamente execrados como traidores por não quererem colaborar com as intenções saudáveis e patrióticas dos seus inquiridores.

MacCarthy mostrando o mapa da presença comunista nos EUA
MacCarthy mostrando o mapa da presença comunista nos EUA
Foto: Reprodução

O comitê reorientado

O irônico na história desse mal-afamado comitê é que criaram-no em 1938 para evitar a infiltração nazi-fascista, mas depois, com o passar do tempo e a crescente presença dos soviéticos, vitoriosos nas batalhas contra os nazistas, mudou de sinal durante a chefia do texano Martin Dies J.º , um jurista caubói, concentrado em mandar inquirir os esquerdistas. O motivo foi a paranóia que se espalhou pelos Estados Unidos decorrente do esfriamento das relações com a URSS, estimulada pelo anúncio da Doutrina Truman em março de 1947, pregando a “contenção” ao comunismo. O ex-aliado Stalin substituía Hitler como a nova besta negra a ser destruída.

Atrás dos demônios vermelhos

Uma onda de demonização do comunismo invadiu o país, tornando a Red Scare de 1919-20 (as razias antibolcheviques e antianarquistas do então procurador-geral Mitchell Palmer) numa brincadeira de criança. Sindicalistas, ativistas, artistas, cientistas, homens de letras, professores e excêntricos em geral foram colocados sob desconfiança pelo Comitê de Atividade Anti-americanas por suas possibilidades de “infiltração”. Para aparelhar a grande caçada o Congresso dotou o Comitê com onze milhões de dólares para poder atuar, amparando-o pela Lei Parkinson, que autorizava o pagamento de agentes e informantes para “desmascarar conspiradores”.

O escritor satírico Ring Lardner Jr., perante o comitê em 1947
O escritor satírico Ring Lardner Jr., perante o comitê em 1947
Foto: Reprodução

Legislação persecutória

O próprio executivo fez sua parte com a “Ordem de Lealdade” de março de 1947, que obrigou todo funcionário público a fazer um juramento de fidelidade às instituições nacionais. A função de inquisidor, como sempre ocorre nessas ocasiões, atraiu o refugo dos congressistas, os que só chegariam às manchetes prestando-se a serem pequenos Torquemadas; gente obscura como J. Parnel Thomas e, mais tarde, como o truculento senador Joseph MacCarthy.

O dramaturgo Arthur Miller, convocado pelo comitê
O dramaturgo Arthur Miller, convocado pelo comitê
Foto: Reprodução

Brecht e os dez de Hollywood

Em outubro de 1947, foi a vez dos “dez de Hollywood” serem chamados a depor: roteiristas, diretores, atores e escritores que arruinaram-se profissionalmente depois de condenados a penas que variavam de 6 a 12 meses de cadeia. Entre eles, estava o célebre Bertold Brecht. O dramaturgo alemão, exilado nos Estados Unidos havia 7 anos,  apresentou-se em 30 de outubro de 1947 expressando-se num  inglês propositadamente confuso,  envolto em fumaça de charuto, tendo o bom senso de escapar para a Europa no dia seguinte. Thomas Mann, outro alemão exilado, temeu que os Estados Unidos, possuídos pela fobia anticomunista, esquecessem suas tradições revolucionárias “aliando-se com o passado para sufocar todas as tendência revolucionárias”. Em pouco tempo, as desconfianças atingiram os atores Lauren Bacall, Humphrey Bogarth e E.G.Robinson, e tantos outros mais.

Lauren Bacall e H.Bogarth, casal sob suspeita
Lauren Bacall e H.Bogarth, casal sob suspeita
Foto: Reprodução

A caçada se amplia

O teatrólogo Bertold Brecht
O teatrólogo Bertold Brecht
Foto: Reprodução

O estrago que esse Comitê (atuou até 1978) provocou na inteligência americana (logo eles, que não estavam acostumados) foi enorme. Pode-se atribuir às perseguições, delações e vexações públicas causadas por ele (contribuindo para formar um clima que chegou a banir livros e autores como Howard Fast, Arthur Miller e até o clássico da literatura social americana “Vinhas da ira” de John Steinbeck) a responsabilidade pela paralisia ou desaparecimento de qualquer pensamento original e contestador entre a intelectualidade americana dos anos 50.

Pior foi a falta de solidariedade de intelectuais liberais ou nem tanto para com os perseguidos, como no caso do direitista Irving Kristol, que indagou: “Devemos defender nossos direitos protegendo comunistas"? O único gênero literário não-conformista que o pais comportou então foi o do beat movement (*), com seus escritores apolíticos, beberrões e acintosamente anticonvencionais: gente como o novelista Jack Kerouac, o caótico Allen Ginsberg, ou ainda os escritores Gregory Corso e  Gary Snyder, que abriram caminho para William Burroughs, todos eles existencialistas, politicamente alienados. Precisou-se esperar o agravamento da Guerra do Vietnã, dez anos depois dos processos macartistas mais violentos, para que a contestação política e ideológica voltasse a fazer parte do saudável clima democrático norte-americano.

(*) originalmente a palavra beat era tida como um sinônimo de “weary” (entediado), mas posteriormente Kerouac deu-lhe uma conotação próxima da música, como se fosse uma espiritualidade “beatífica”, um estado de espirito e um comportamento especifico que identificava os integrantes do movimento e seus seguidores que, de certa forma, eram uma versão despolitizada norte-americana dos existencialistas franceses do após-guerra.

Fonte: Especial para Terra
Compartilhar
Publicidade
Publicidade